01 agosto 2007

 

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01 janeiro 2007

 

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16 março 2006

 

hamlet
insurrecto

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Hamlet insurrecto
Ato 1
O Rei e o Espectro


"Em cada época marcante de sua história, a sociedade brasileira tem sido levada a pensar-se novamente. É como ela se debruçasse sobre si mesma: curiosa, inquieta, atônita, imaginosa. Não só se formulam novas interpretações como se renovam as anteriores.

Acontece que o presente problemático, difícil ou inovador, desafia o entendimento da sociedade, as explicações conhecidas.

As forças sociais predominantes em cada época são levadas a pensar os desafios com os quais se defrontam, os objetivos que pretendem alcançar, os aliados e opositores com os quais negociar, os interesses próprios e alheios que precisam interpretar. Ao pensar o presente, são obrigadas a repensar o passado, buscar e rebuscar continuidades, rupturas e inovações. Mesmo quando pretendem o futuro, são postas a pensar outra vez o passado, acomodá-lo ao presente, ou até mesmo transformá-lo em matriz do devir"
[1]


Rei : “Um fantasma ronda o meu reino.”
[2]
“Assombra permanentemente o castelo, ameaçando o trono e a coroa. Como um teimoso, sempre volta mais uma vez, resistindo a todos os golpes perpetrados contra ele.” [3]

Espectro : Ouve-me !

Rei : Eu sou o Rei morto. Como mortos deveriam estar todos os reis.

Espectro : Ouve-me !

Rei : Eu sou o Rei posto. Como postos estão todos os reis.

Espectro : Pela terceira vez: ouve-me !

Rei : Escuta, escuta ! Oh, Escuta !
“Assassinato infame, como sempre é; mas este é o mais infame, horrendo e monstruoso.
Oh ! Maldito engenho e pérfidas dádivas que possuem tal poder de sedução !
Disseram que estando dormindo em meu jardim, fui mordido por uma serpente; deste modo todos foram grosseiramente enganados com esta fabulosa história de meu falecimento.
A serpente que me tirou a vida, usa agora a coroa que me pertencia.”
[4]

Espectro : “Oh ! Infâmia ! Detém-te, detém-te, meu coração.”
[5]
Qual o maior crime: destronar ou coroar um Rei.
“Nos livros vem o nome dos reis, mas foram os reis que transportaram as pedras ?
Quem ergueu os arcos de triunfo ?
Em cada página uma vitória. E quem pagava as despesas ?
E ninguém mais ?”
[6]

Rei : Hamlet ! Hamlet ! Algum dia todo esse reino será seu.
“Vinga-me o torpe assassinato !
Não permitas que o leito real seja boda de incesto e luxúria.”
Hamlet ! Hamlet !
“Num só golpe sinistro derruba ferozmente tantos príncipes.
Atos sanguinários, julgamentos precipitados, mortes fortuitas, pela astúcia ou pela violência. Erros e intrigas trazendo desgraças. Vinga-me, Hamlet, o torpe assassinato !”
[7]
“Um reino por um assassino.” [8]
“Sejam de sangue seus pensamentos, ou só mereçam o esquecimento !” [9]
Hamlet !
Banhe de sangue o castelo.
“Escave o solo uns palmos mais abaixo, fazendo numa mesma estrada chocar-se um ardil contra outro ardil.”
[10]
Então, mate Polônio. Enlouqueça Ofélia e a arraste ao suicídio. Faça com que a Rainha brinde da taça envenenada. E Laerte caia morto na própria armadilha. Mate o Rei assassino com o veneno que ele mesmo preparou. Então completa sua obra. Morra, Hamlet ! Morra ! Desgraças, infortúnio, tragédia ! Morra,Hamlet !
Fortimbrás herdará o reino e minha vingança será completa !
“Adue, adue, Hamlet. Lembra-te de mim.”
[11]

Espectro : Reis sucedem reis, perpetuando a dinastia de infâmia e horrores.
“Há algo de podre no reino da Dinamarca”
[12]
Os Reis se alimentam da vingança e da tragédia.
“O Rei morreu ! Morram todos os Reis!”
[13]
Eu era o Espectro.
“Atrás de mim, as ruínas da esperança.”
[14]
Eu não sou o Espectro.
“Eu não interpreto mais nenhum papel.
Eu não sou mais um ator.
A esperança não se cumpriu. Três anos depois...”
[15]
Eu sou o espírito daquilo que foi traído. E a vingança não me seduz. Tenho sede e fome de justiça.
Eu dormia eternamente deitado em meu berço esplêndido.
“Foi durante o meu sono, pela mão de um irmão, que perdi ao mesmo tempo a vida, a coroa, a rainha.”
[16]
Sobre o meu caixão se casaram Casa Grande e a Senzala; em meu túmulo copulam os bancos e as favelas.
“Algo está podre nesta época de esperança.”
[17]
A tragédia histórica de transformar em farsa o que foi escrito com sangue nas estrelas.
“Sonhos roubados convertidos em pesadelo. Esperança em medo. Haverá um futuro ? O futuro precisa de nós ? Isso é o que nós somos, o fim e o começo.”
[18]
“Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro. Hamlet, hoje és nevoeiro... A hora é agora.”
[19]
“Nada a perder, senão os grilhões. E um mundo a ganhar.” [20]

Rei : “Jurai ! Jurai !”
[21]

Espectro : Jurai ?
“Sabemos o que somos ? Sabemos o que poderemos ser?”
[22]
“Esta é a mais terrível de nossas heranças. Somos carne da carne de escravos e de senhores de escravos.” [23]
Jurai ?
“Oh ! Vingança ! Que estúpido sou eu !”
[24]
"Em nenhum momento tão grande foi a distância entre o que somos e o que esperávamos ser." [25]
Jurai ?
“Uma promessa sem fé em si mesma, sem fé no povo, rosnando para os de cima, tremendo diante dos de baixo, egoísta em relação aos dois lados e consciente de seu egoísmo, revolucionária contra os conservadores, conservadora contra os revolucionários; desconfiada de suas próprias palavras de ordem, frases em lugar de idéias, intimidada pela tempestade mundial, mas dela desfrutando – sem energia, em nenhum sentido, plagiaria em todos os sentidos, vulgar porque não era original e original na vulgaridade – traficando com seus próprios desejos...”
[26]
Eu sou o espírito daquilo que foi traído. E a vingança não me seduz. Tenho sede e fome de justiça.
Eu sou a mais vil traição. Eu sou a esperança de um povo reduzida a mentira e ao segredo.
“O mundo está fora dos eixos. Maldita sorte ! Haverá já nascido algum Hamlet para colocá-lo em ordem ?”
[27]


[1] “A idéia de Brasil moderno”, Octávio Ianni
[2] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[3] “Um mundo a ganhar, Wladimir Pomar
[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[5] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[6] “Perguntas de um operário que lê”, Bertold Brecht
[7] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[8] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[9] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[10] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[11] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[12] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Marcelo
[13] “Isso é o que nós somos, companheiro”, arkx
[14] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[15] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[16] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[17] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[18] “Isso é o que nós somos, companheiro”, arkx
[19] “Mensagem”, Fernando Pessoa
[20] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[21] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[22] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Ofélia
[23] “O Povo Brasileiro”, Darcy Ribeiro
[24] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[25] “A Busca de Novo Horizonte Utópico ”, Celso Futado
[26] “A Burguesia e a Contra-Revolução, , Karl Marx
[27] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet

 

Hamlet insurrecto

Ato 2
Ser ou não ser Hamlet


“Estamos condenados à civilização.
Ou progredimos, ou desaparecemos.”
[1]

Hamlet : “A questão de todas as questões: ser ou não ser. Que é mais nobre para a alma: sofrer os dardos de um destino cruel, ou pegar em armas contra um mar de calamidades e contra elas lutar até dar-lhes fim.” [2]

(O Espectro vaga pelo palco, delira a história do Brasil)

Espectro : “Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.”
[3]

Hamlet : “Morrer... dormir; nada mais ! Morrer... dormir ! ... Talvez sonhar ! Sim, eis a dificuldade !”
[4]

Espectro : “Esqueçam ! Esqueçam tudo o que escrevi...”
[5]
“Não me deixem só !” [6]
“Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração. A mim não falta a coragem da renúncia.” [7]
“Laços fora ! Independência ou morte !”
[8]
“Antes que algum aventureiro lance mão.” [9]

Hamlet : “Todos os acontecimentos me acusam, impelindo-me à minha triste vingança! Que papel, então, estou fazendo. Por quê deixo que tudo durma em paz ?”
[10]

Espectro : “Longe vá... temor servil. Os grilhões que nos forjava da perfídia astuto ardil. Não temais ímpias falanges que apresentam face hostil. Vossos peitos, vossos braços. Já com garbo varonil.”
[11]

Hamlet : “Algum tímido escrúpulo de pensar nas consequências com excessiva minúcia (reflexão esta que de quatro partes tem uma só de prudência e sempre três de covardia), não compreendo porque vivo ainda para dizer: ‘Isto ainda está por fazer’, visto que tenho motivo, vontade, força e meios para fazê-lo.”
[12]

Espectro : “Há outro caminho possível.”
[13]
“Mudei de idéia, sim. E daí ?” [14]
“Para fazer o mesmo que o meu antecessor, eu prefiro antes Deus me tirar a vida.”
[15]
“Eu não mudei. É a vida que muda.” [16]

Hamlet : “E é assim que a consciência nos transforma em covardes, é assim que a força inicial de nossas resoluções se debilita na pálida sombra do pensamento e é assim que as empreitadas de maior alento e importância deixam de ter o nome de ação.”
[17]

Espectro : “Como repousar meu coração inquieto, se mais uma vez sucumbimos por não sermos capazes de sonhar o bastante.”
[18]
Se não dissipamos a névoa da ilusão de uma manhã gloriosa, quando, enfim, vindo da terceira margem do rio, retornará um Rei que nunca tivemos ?
“Se toda a realidade é um excesso, uma violência, uma alucinação extraordinariamente nítida, que vivemos todos em comum com a fúria das almas.”
[19]

Hamlet : “Estamos agora exatamente na hora dos feitiços noturnos, quando os cemitérios bocejam e o próprio inferno solta seu sopro pestilento sobre o mundo ! Seria, agora, bem capaz de beber sangue quente e fazer tais horrores que o dia ficaria trêmulo só de contemplá-los !”
[20]

Espectro : “Não te esqueças.”
[21]
“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não escolhem as circunstâncias, que são o legado do passado.” [22]

Hamlet : Questões e mais questões que me esmagam sob o peso da dúvida, da incerteza, da indecisão...
Devo me entregar de corpo e alma ao mar de sangue da vingança ?
Ou aceitar a mansa resignação do pacto palaciano ?
Mais vale se desfazer dos escrúpulos e conservar o reino; ou não abrir mão dos princípios e junto com o reino perder a própria vida ?
Qual o caminho da justiça ?
“Maldita sorte ! Como recolocar em ordem um mundo fora dos eixos ?”
[23]

Espectro : “Não te esqueças. Não te esqueças.”
[24]

[1] ”Os Sertões”, Euclides da Cunha
[2] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[3] “Carta Testamento”, Getúlio Vargas
[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[5] Fernando Henrique Cardoso
[6] Fernando Collor, 22/06/1992
[7] Jânio Quadros, 25/08/1961
[8] D.Pedro I,07/09/1822
[9] D. João VI
[10] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[11] “Hino da Independência”, música: D.Pedro I, letra: Evaristo da Veiga
[12] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[13] “Carta ao povo brasileiro”, Luiz Inácio Lula da Silva, 22/06/2002
[14] José Dirceu, 05/2003
[15] Luiz Inácio Lula da Silva, 09/2002
[16] Luiz Inácio Lula da Silva, 05/2003
[17] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[18] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet; “O Marinheiro”, Fernando Pessoa
[19] “Afinal”, Álvaro de Campos
[20] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[21] “Hamlet”, Shakespeare
[22] “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, Karl Marx
[23] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[24] “Hamlet”, Shakespeare

 

Hamlet insurrecto

Ato 3
Polônio e a utopia do possível
[1]

“A modernização, pelo seu toque voluntário, senão voluntarista, chega à sociedade por meio de um grupo condutor, que, privilegiando-se, privilegia os setores dominantes.


A modernização, quer se chame industrialização, revolução passiva, via prussiana, revolução do alto – ela é uma só, com um vulto histórico, com muitas máscaras, tantas quantas as das diferentes situações históricas.

A história que daí resulta será uma crônica de déspotas, de elites, de castas, nunca a história que realiza, aperfeiçoa e desenvolve. A história, assim fossilizada, é um cemitério de projetos, de ilusões e de espectros. O povo, por esse meio, não participa da mudança: ele a padece.


Desta vez, os espectros vagam nas ruas,sem emprego, miseráveis, depois de, perdendo tudo, perderem a esperança.” [2]


Hamlet : “Olha, Polônio. Um fantasma assombra o país. Tremem à presença dele e para conjurá-lo se unem.” [3]

Polônio : “Não vejo nada; todavia estou vendo tudo quanto nos cerca.”
[4]

Hamlet : “Como ! Olhai para ele ! Vede seu pálido cintilar ! Sua presença e sua causa, juntas, pregando para as pedras, chegariam a comovê-las !”
[5]

Polônio : “É pura invenção de teu espírito. O delírio é muito hábil nessas quiméricas invenções.”
[6]

Hamlet : “Delírio ? Se fosse loucura, fugiria aos pulos...
Não derrameis sobre vossa alma a unção lisonjeadora de acreditar que não é vosso delito que fala, mas minha demência.
Nestes tempos, a própria virtude tem de pedir perdão ao vício e ainda deve prostrar-se a seus pés, implorando-lhe permissão para fazer-lhe o bem.”
[7]

Polônio : “Grande verdade dizes, meu senhor.”
[8]

Hamlet : “Estais vendo ali aquela nuvem, que tem a forma de um vaidoso pássaro ? Olhai que bico excelso ! ”
[9]
“De que espécie de bom camarada será membro ?” [10]

Polônio : “Dos Brasis, não é ? Bela plumagem e carne ruim.”
[11]

Hamlet : “Sim, tão estranho e feioso que parece uma mistura de pato com réptil.”
[12]

Polônio : “É verdade ! Que combinações esdrúxulas ! Uma espécie de aberração! Uma nova classe ! Truncada e sem remissão...”
[13]

Hamlet : Não seria um sapo ?

Polônio : “Pelos céus ! E tem barbas ! Como o vamos engolir ?”
[14]

Hamlet : Não se ocupe disto. É ele quem vai nos deglutir, sugando nossos sonhos pela sua cloaca imunda. Com a voracidade de um buraco negro, arrasta toda esperança para o coração das trevas.

Polônio : “Que estranha borboleta !
No apogeu da juventude,
protagoniza seu ocaso,
voltando ao casulo
para morrer como lagarta...”
[15]

Hamlet : Mas, por falar em animais, aqui estou vendo um rato ?
[16]
“Ou é uma criança grande com fraldas ?” [17]

(Hamlet aponta para Polônio)

Polônio : “Será que me conheceis, senhor ?”

Hamlet : “Perfeitamente bem. És quem vende peixes.”

Polônio : “Não eu, meu senhor.”

Hamlet : “Mesmo o Sol que é um deus, se beija cadáver putrefato, gera larva num cão morto...”
[18]
Não devias estar na ceia ? [19]

Polônio : Na ceia ?! Onde ?

Hamlet : “Sim. Na ceia. Mas não ceando. Estás melhor sendo comido. Um homem pode pescar com o verme que se alimentou de um rei e comer o peixe que se nutriu daquele verme.”
[20]

Polônio : “Que queres dizer com isto ?”

Hamlet : “Nada; simplesmente mostrar-vos como um rei pode circular pelas tripas de um mendigo.”
[21]
Posto isto, caro conselheiro, muito cuidado... Não nos deixemos inocular pela mosca azul...

(Hamlet pega um livro e começa a ler)

Polônio : “Que estás lendo, meu senhor ?”

Hamlet : “Palavras, nada mais que palavras...”

Polônio : “Quero dizer: qual o assunto que estais lendo, meu senhor ?”
[22]

(Hamlet lê em voz alta)

Hamlet : “De repente, dei-me conta de que navegávamos para oeste, quando todos os planos orientavam-nos a leste. Não me restava alternativa: prosseguir no barco ou atirar-me no rio. Livrei-me da roupa e da bagagem e, abraçado a um cacho de valores, mergulhei. Nadei até a terceira margem do rio, esgueirei-me das piranhas e dos jacarés em busca de mim mesmo.”
[23]

(Hamlet volta-se para Polônio)

Hamlet : Falamos tanto de bichos, que até poderíamos fazer uma revolução...

Polônio : Não me agrada em nada a idéia, meu senhor. Revoluções são muito perigosas. É sempre preferível uma modernização que conserve o acordo das elites.
[24]

Hamlet : “Então, astuto conselheiro real, cujas intrigas tem a pretensão de enganar até a Deus, estás ou não convencido haver entre o céu e a terra mais coisas do que sonha tua vã filosofia ?”
[25]

Polônio : “Meu nobre príncipe, dadas as circunstâncias, é meu conselho lidar com o mal menor enquanto o bem maior se mostra inalcançável.”
[26]

Hamlet : “É terrível que o homem se resigne tão facilmente com o existente, não só com as dores alheias, mas também com as suas próprias.”
[27]

Polônio : “Fôssemos infinitos, tudo mudaria. Como somos finitos, muito permanece.”
[28]

Hamlet : Como saber se um rei é justo ?

Polônio : Se doa esmolas aos pobres e distribui juros aos ricos.

Hamlet : “Pelo que vejo, fazeis o possível com vossa arte...”
[29]

Polônio : “Sem dúvidas, meu senhor. Minhas utopias são todas realistas.”
[30]

Hamlet : “Que fizeste à Fortuna para que ela vos enviasse para esta prisão ?”

Polônio : “Prisão, meu senhor ?”

Hamlet : “Este país é uma prisão...”

Polônio : “Neste caso, o mundo também é.”

Hamlet : “Uma enorme prisão, na qual existem muitas celas, masmorras e calabouços. E este país é um dos piores.”

Polônio : “Não penso assim, meu senhor.”
[31]

Hamlet : “Um satírico maledicente diria que os velhos têm a barba grisalha, a pele enrugada, com olhos que purgam espesso âmbar, que são cheios de ausência de espírito, juntamente com fraquíssimas nádegas. Calúnia ! Não o penso assim nestes termos, porque mesmo vós, tão velho quanto eu ficaríeis, caso pudésseis andar para trás como um caranguejo.”
[32]

(Hamlet muda subitamente de assunto)

Hamlet : “Não tendes uma filha ?”
[33]

[1] Fernando Henrique Cardoso, 2002
[2] ”A questão nacional: a modernização”, Raymundo Faoro
[3] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha
[5] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[6] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha
[7] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[8] “Hamlet”, Shakespeare
[9] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[10] “O Vigarista”, Herman Melville, acerca do tucano
[11] “O Vigarista”, Herman Melville, acerca do tucano
[12] “O Ornitorrinco”, Francisco de Oliveira
[13] “O Ornitorrinco”, Francisco de Oliveira
[14] Leonel Brizola, 1989
[15] “PT viveu como borboleta, mas morre como lagarta”, Josias de Souza
[16] “Hamlet”, Shakespeare – morte de Polônio
[17] “Hamlet”, Shakespeare
[18] “Hamlet”, Shakespeare
[19] “Hamlet”, Shakespeare – sobre Polônio
[20] “Hamlet”, Shakespeare
[21] “Hamlet”, Shakespeare
[22] “Hamlet”, Shakespeare
[23] “A moca azul”, Frei Betto
[24] ”A questão nacional: a modernização”, Raymundo Faoro
[25] “Hamlet”, Shakespeare
[26] “Hamlet. Eis a questão”, Reinaldo Azevedo
[27] “A esperança do mundo”, Brecht
[28] “Se fôssemos infinitos”, Brecht
[29] “A política é a arte do possível”, Bismarck
[30] “A idéia da revolução democrática”, Tarso Genro
[31] “Hamlet”, Shakespeare
[32] “Hamlet”, Shakespeare
[33] “Hamlet”, Shakespeare

 

Hamlet insurrecto

Ato 4
Ofélia assassina


“Como se pode acreditar em reconstrução da sociedade após um século de derrocada das utopias? O mundo assiste à vitória do conformismo, travestido de realismo.


A esquerda atua e fala como se escondesse um plano que não tem. Temerosa da reação econômica a qualquer iniciativa transformadora, esforça-se para parecer confiável aos que manejam o dinheiro.

É também por falta de confiança e de clareza a respeito de outro rumo que os progressistas se entregam.

A obra do pensamento é compreender o mundo e mudá-lo. A primeira tarefa de um homem, porém, é não morrer aos poucos: viver de tal maneira que possa morrer de uma vez só. O preço da vitalidade é a renúncia às defesas com que nos protegemos contra a desilusão e a derrota. Quem pagar esse preço pagará pouco por muito.” [1]


(Hamlet sentado com um crânio nas mãos)

Hamlet : “Eu quero ser uma mulher.”
[2]
Não para ter uma buceta. Eu não quero deixar de ser homem para ser uma mulher. Eu quero ter um útero. Com o órgão que as mulheres geram pessoas, serei capaz de parir sonhos.

Ofélia : “Eu sou Ofélia.”
[3]
Aquela que é cortejada e igualmente desprezada pelos homens, conforme seus desejos e seus interesses. Meu destino é deixar-me conduzir pela mão traiçoeira de um Rei assassino para me tornar a Rainha incestuosa.
“Ao voltar meus olhos para o fundo de minha alma, somente enxergarei manchas, tão negras e tão profundas que nunca poderão ser apagadas.”
[4]

(Hamlet caminha em direção a Ofélia)

Hamlet : “Ah ! Abjeção ! Ela ! Ela mesma ! Antes mesmo que o sal das lágrimas hipócritas abandonasse o fluxo de seus olhos inflamados... Olhos sem tato, tato sem vista, ouvidos sem mãos ou olhos, olfato sem nada, a mais insignificante parte de um único e saudável sentido teria bastado para impedir semelhante estupidez. Estoura meu coração, pois devo refrear minha língua !”
[5]

Ofélia : Eu sou Ofélia.
Aquela que os homens querem que enlouqueça e que se suicide.
“Adornada com estranhas grinaldas de botões de ouro, urtigas, margaridas e flores púrpuras, atiro-me no soluçante riacho. Enquanto canto estrofes de antigas árias, inconsciente de minha própria desgraça, afundo lentamente para a morte lamacenta, em meio às melodias de minha loucura.”
[6]

Hamlet : “Entra para um convento ! Por que desejas ser mãe de pecadores ? Sou muito orgulhoso, vingativo, ambicioso, com mais pecados na cabeça do que pensamentos para concebê-los, imaginação para executá-los. Por que hão de existir pessoas como eu arrastando-se entre o céu e a terra ? Todos nós somos consumados canalhas; não acredites em nenhum de nós. Segue teu caminho para o convento.”

Ofélia : Eu sou Ofélia. Mas eu não vou mais representar Ofélia.
Eu não vou mais enlouquecer. Eu não vou mais me matar.
Eu não quero mais ser Rainha. Eu não quero mais ser esposa. Não quero me casar. Não quero mais ser mãe. Não quero mais ser virgem e casta. Não quero mais ser devassa. Não quero mais servir aos homens.
Todo homem que um dia caminhou sobre a face da terra, começou a viver dentro do meu ventre; veio ao mundo pelo meio de minhas coxas; ganhou a luz pelo buraco de minha vagina.
Todo homem é resultado do sêmen depositado em meu útero.
“E hoje eu devolvo ao mundo todo o esperma que recebi, porque ele se transformou num veneno mortal.”
[7]
Eu não quero mais ser fecundada pelos homens. Eu não quero mais ser uma máquina de parir gente.
Eu não quero ser homem. Eu quero ser uma mulher. Mas eu não quero ser uma mulher num mundo de homens. Eu quero ser Ofélia.
Meu coração é o pêndulo do mundo.
“Eu arranquei o relógio que era meu coração para fora do meu peito. E fui para as ruas, vestida com meu sangue.”
[8]

(Hamlet novamente com o crânio nas mãos)

Hamlet : “Ser ou não ser... Eis a questão.”
[9]

Ofélia : Eis o Príncipe indeciso. Incapaz de transformar suas dúvidas em ação. Incapaz de agir sem provocar tragédias.
Eis o Príncipe acorrentado aos fantasmas de um passado que exige vingança. Incapaz de atender a um presente que clama por justiça. Incapaz de construir um futuro que não seja vil e iníquo.
Eis o Príncipe, o herdeiro do trono. Incapaz de romper com a sucessão de donos do poder. Incapaz de olhar para além das muralhas do palácio.
“Há algo de podre no reino da Dinamarca.”
[10]
Onde estarão os Dinamarqueses ? Por que estão sempre fora de cena os Dinamarqueses ?
Que tumulto é este fora do palco ?
“Um fantasma ronda esta peça.”
[11]
Todos se unem para exorcizá-lo. Em vão !
Eu já não sou Ofélia. Sou a nação traída.
“O país inteiro transformado num puteiro.
O futuro repetindo o passado.
Um museu de grandes novidades.”
[12]
“Toda a luminosa esperança de uma inteira nação convertida num repugnante acordo entre financistas e famintos, entre os bancos e os grotões.” [13]
Eu já não sou Ofélia. Sou a multidão de humilhados.
Sou o exército de miseráveis.
Sou a privação de humanidade. Os sem-teto. Os vagabundos. Os mendigos.
Sou a privação de atividade. Os velhos, os loucos, os doentes, os delinqüentes.
Sou a privação de trabalho. Os imigrantes clandestinos, os refugiados políticos, os desempregados.
Sou a privação de liberdade. Os proletários e as prostitutas. Os adolescentes e os subempregados.
[14]
Sou a rebelião, a insubmissão, a resistência, a insurreição.
Sou a fúria e a paixão.

Hamlet : “Que é mais nobre para a alma: sofrer os dardos de um destino cruel, ou pegar em armas contra um mar de calamidades e contra elas lutar até dar-lhes fim.”
[15]

(Ofélia aponta para Hamlet)

Ofélia : Eis a questão.
“Eis o homem.”
[16]
Aquele que destronou Deus e ocupou o seu lugar.
“Reis sucedem reis, perpetuando a dinastia de infâmia e horrores.
[17]
Disseram que ao adormecer em seu jardim, Deus foi mordido por uma serpente. A serpente que lhe tirou a vida, agora usa a coroa que a ele pertencia.
[18]
“Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? — também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, nós assassinos entre os assassinos?” [19]
Eis o homem.
“Que obra-prima é o homem ! Para mim, entretanto, o homem não passa da quintessência do pó.”
[20]
"O homem nada mais é que uma corda estendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo; travessia perigosa, temerário caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
A grandeza do homem é ser ele uma ponte, e não uma meta; o que se pode amar no homem é ser ele uma transição e um ocaso."
[21]
Deus está morto e também o homem deve morrer.
“Hamlet desaparecerá, como na orla do mar um rosto de areia.”
[22]

(Ofélia mata Hamlet)

Ofélia : O homem está morto.
“O mundo está fora dos eixos. Bendita sorte ! Eu quero parir o ser capaz de colocá-lo em ordem !”
[23]


[1] “Contra a corrente”, Roberto Mangabeira Unger
[2] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[3] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha
[5] “Hamlet”, Shakespeare
[6] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha
[7] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[8] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[9] “Hamlet”, Shakespeare
[10] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Marcelo
[11] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[12] “Brasil”, Cazuza
[13] “Anti-corvos”, arkx
[14] “A política do rebelde”, Michel Onfray
[15] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[16] João: 19,5
[17] “Hamlet insurrecto”, arkx
[18] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[19] “A Gaia Ciência”, Nietzsche
[20] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[21] “Assim falou Zaratustra”, Nietzsche
[22] “As palavras e as coisas”, Michel Foucault
[23] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet

 

Hamlet insurrecto

Ato 5
Insurrecto

“O Brasil mudou muito ao longo de seus 500 anos. E a grande alteração foi a formação do povo brasileiro. Na origem, éramos contingentes de desenraizados: índios destribalizados, negros desafricanizados, brancos deseuropeizados. E o processo histórico brasileiro constituiu um povo novo, com uma clara identidade nacional, que fala a mesma língua, que desenvolveu uma cultura de síntese, que tem características muito positivas. Ele nasceu na modernidade e olha para o futuro.


Formar o povo brasileiro foi nosso maior êxito, mas temos um imenso fracasso: esse povo nunca comandou sua nação. Durante nossa história convivemos com essa contradição. Só que não está sendo mais possível, porque o povo já é forte e grande demais. Agora, o passo histórico é assumir o controle da sua nação, para refundá-la.

O Brasil foi fundado há 500 anos como uma empresa comercial controlada e voltada para fora. O Brasil tem de ser refundado como uma nação para si. Quem pode fazer isso é o povo e só agora ele tem condições para isso.

Então, a crise atual é muito mais profunda e dramática do que as outras, porque ela exige uma solução radical que nunca tivemos. Por isso ela é tão demorada, prolongada e mais difícil.” [1]


Hamlet : Deus e o homem estão mortos.
Hamlet está morto.
Os reis estão mortos.
“Eu não sou mais um ator.”
[2]
Eu me tornei o Espectro.
Estou morto. Apesar disto nunca estive tão vivo quanto agora.
Sou o fantasma que assombra esta peça. Inútil tentar conjurar-me. Tremam ao ouvir o meu nome.
[3]
À cegueira da vingança, eu respondo com implacável justiça.
Desmascaro os reis assassinos.
Abdico ao trono.
Renego a coroa.
Abro os portões do castelo.
Que enfim os Dinamarqueses invadam a cena para varrer a podridão do reino da Dinamarca.
Agora, todo este reino será deles.
Já não tenho dúvidas, mas todas as questões continuam em aberto.

Hamlet : Hoje eu venho para o alto deste palco. E meu único motivo é descobrir o que se pode ver daqui de cima.
[4]
Garantiram não haver alternativa. [5]
Afirmaram se tratar de uma era de prosperidade sem igual na história do Homem, um novo renascimento. [6]
Em vez disto, à minha frente contemplo as ruínas da nação.
Uma paisagem desolada pela exclusão e da usurpação.
Fantasmas vagam pela escuridão do caos enquanto reis festejam seus torpes crimes.
“O sonho desmoronou.”
[7]
A esperança não se cumpriu. [8]

Hamlet : Hoje eu me volto para dentro de mim mesmo. E meu único motivo é ver o que posso descobrir neste mergulho interior.
“Eu sou meu filho, meu pai, minha mãe, e eu mesmo. Eu represento o ator ! Estou sempre morto. Mas um vivo morto, um morto vivo. Sou um morto sempre vivo. A tragédia em cena já não me basta. Quero transportá-la para minha vida. Eu represento totalmente a minha vida. Onde as pessoas procuram criar obras de arte, eu pretendo mostrar o meu espírito. Não concebo uma obra de arte dissociada da vida.”
[9]
Eu não represento mais ninguém.
Eu não represento mais nada.
A representação está morta.
“Para mim é tão odioso seguir quanto guiar.”
[10]

Hamlet : “Após o fim de tudo, fantasmas rondam o país.
Anfitriões da utopia, anunciam nada mais a se perder.
Senão as correntes que aprisionam um mundo a ganhar.
Isso é o que nós somos: o fim e o começo.
Dos escombros do velho novamente se ergue o clamor por mudança.
O que fazer ?
Tudo é incerto.
Nada é inteiro.
Isso é o que nós somos : nevoeiro.
A hora é agora !
Aqui nasce o futuro !”
[11]

Hamlet : O mundo está fora dos eixos.
[12]
Onde estarão aqueles nascidos para colocá-lo em ordem ?
Por que não sobem ao palco aqueles nascidos para colocar ordem no mundo ?

(Hamlet aponta para a platéia)

Hamlet : “Ser ou não ser... Eis a questão.
Adue, adue. Lembrem-se de mim.
Não se esqueçam. Não se esqueçam.”
[13]


[1] César Benjamin, 07/01/2006
[2] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[3] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[4] “A subida ao Monte Ventoux”, Petrarca - 26/04/1336
[5] TINA (There Is No Alternative), Margaret Thatcher, 1979
[6] Fernando Henrique Cardoso, 20/02/2002
[7] Francisco Whitaker, 02/01/2006
[8] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[9] Antonin Artaud
[10] “A Gaia Ciência”, Nietzsche
[11] “Isso é o que nós somos, companheiro”, arkx
[12] “Hamlet”, Shakespeare
[13] “Hamlet”, Shakespeare

20 dezembro 2005

 

a porta do futuro: "future is the mind"
21/11/2004

Conversamos um pouco com um casal, durante um jantar num dos típicos restaurantes de Lisboa. Eles estavam na mesa ao lado da nossa e demonstraram estar a fim de um papo.
São Belgas e falam "flamengo". Ao saberem que éramos brasileiros, manifestaram muito interesse, principalmente o homem, que já era um senhor.

Ele repetiu diversas vezes, em inglês, que o Brasil é o país do futuro. Eu manifestei minha discordância. Comentei sobre os enormes problemas brasileiros. Afirmei que economicamente o Brasil tem, nos últimos anos, retrocedido no tempo.

O Belga balançou a cabeça e disse com ênfase que, sem dúvidas o Brasil era mesmo o país do futuro. E aquela simples conversa confirmava isto.

E explicou seu ponto de vista: "Future is not ecnomic. Future is the mind. It is multicultural. It is diversity".

naquela agradável noite de verão em Lisboa, talvez o belga, inspirado pela visita ao claustro do Mosteiro dos Jerônimos e sob intenso efeito do vinho português, apenas divagasse sobre navegadores a singrar os mares e a criar a civilização transoceânica moderna.

em seu devaneio sonhava com manhãs e cavalos brancos nas margens enevoadas do Tejo, e acabou tomando o Brasil como futura realização do Quinto Império.

sendo assim, aquilo não passou de mera conversa de bar, pronta a ser relegada ao esquecimento pela dura realidade do dia seguinte.

pode ser também que o belga se referisse aos mais valiosos patrimônios Brasileiros: o povo, que tem a maior mistura genética do mundo, a imensa biodiversidade existente no país e o fantástico componente multicultural de nossa sociedade.

neste caso, fica um tanto inusitado testemunhar em Portugal, de quem fomos colônia, um belga a se ufanar pelo Brasil, mesmo que eu me esforçasse para convencê-lo do contrário.

por outro lado, o belga tem toda razão em afirmar que o futuro não é econômico, sob cujo prisma nos tornamos humanos em virtude do trabalho, e que por ser fator hegemônico trouxe a humanidade ao beco sem saída atual, cuja falência de modelos tem uma de suas mais agudas expressões no Brasil contemporâneo.

o futuro é a mente ? pode ser apenas um jeito de se pensar... seja como for, podemos estar certos de que não haverá futuro algum se não começarmos a pensar e discutir um outro caminho aqui e agora no presente.

12 dezembro 2005

 


tudo mudará
05/09/2005


“Não haverá mais sonho. Preciso botar o pé no chão.”
“Mas creio que há possibilidade de uma coalizão de centro-esquerda, capaz de negociar com a direita sem compra-la.”
Fernando Gabeira
( entrevista à “Folha de São Paulo”, 04/06/2005 )


Houve certa vez, num passado nem tão distante, embora mais e mais remoto, uma geração capaz de ousar tomar os céus de assalto.


Hoje na discreta mansidão do envelhecimento, seus mais típicos representantes tem os pescoços amarrados por gravatas floridas, crendo na obra e graça da sedutora estamparia para se transformarem em algo diverso daquilo a que se deixaram converter: meros senhores engravatados.

Alardeiam como prova cabal de suposta sabedoria, vinda de um amadurecimento tardio, a conclusão de não mais haver sonhos, a não ser fincar os pés no que tomam como a realidade.

Fazem-se esquecidos de ser o sonho a matriz geradora do real, e se negam a admitir que sua capitulação decorre de não terem aprendido como sonhar o bastante.

Foram contemporâneos de uma classe operária desembarcada do “pau-de-arara” em São Paulo já com a intenção de chegar ao paraíso.

De uma longa trajetória de lutas, emergiu o líder sindical que enfim subiu o planalto, alçando pela primeira vez um trabalhador à Presidência da República.

Num intrincado jogo de espelhos, virando tudo pelo avesso do avesso do avesso, homem e personagem se confundem no labirinto.

De tanto fingir o que é, o homem acabou por se tornar aquilo que fingia, mas que de fato era.
A mais completa impostura na sincera mentira de representar a verdade.

Conduzido nos ombros da plebe ao palácio com a missão de mudar o Brasil, o presidente filho do povo operou o maior estelionato eleitoral da história do país.

Entretanto, a força que o elegeu não protagoniza traições e numa cambalhota para o impossível realiza o sonho, cumprindo a promessa de campanha, mesmo que pelo mais torto dos caminhos.
A nação não mais será a mesma após o Governo Lula.

Apesar dele, tudo mudou. Tudo mudará.

Enquanto isto, intelectuais silenciosos, guerrilheiros arrependidos e militantes perplexos teimam em tirar dos fatos apenas as lições que lhes são convenientes.

Caído o muro dos paraísos, não enxergam a rota aberta para a utopia. Da crítica ao elogio da ignorância se curvam reverentes a uma cultura obscurantista. Na formação das raízes profundas de um Brasil de corrupção e miséria, não identificam que nunca fomos propriamente uma nação, e sim uma empresa voltada para fora e controlada de fora.

E apesar do repetido fracasso retumbante da esquerda, insistem na ilusão de uma santa aliança capaz de conciliar interesses antagônicos. A mãe de todos os enganos. Negócios sem implicar em compra e venda. Especialmente com a direita, que não entrega o que se comprou – apoio – e quer receber o que jamais deveria ser vendido: a alma.

A cada vez que os conformados se rendem aos escombros do velho, deles se ergue um novo ciclo, aprisionando no passado todos aqueles que não aceitarem ainda mais uma vez construir o rumo do futuro.


11 dezembro 2005

 




  • "Eu não mudei. É a vida que muda."
    Lula
  • "Mudei de idéia, sim. E daí ?"
    José Dirceu

    05/2003


10 dezembro 2005

 


isso é o que nós somos, companheiro
02/07/2005


( sobre “Flores, flores para los muertos”
de Fernando Gabeira,
publicado na “Folha de São Paulo” em 18/06/2005 )


frases esparsas num bloco de notas
pétalas caindo numa cova vazia
não falem de flores
deixem que os mortos enterrem seus mortos
não se entrega não
só se entrega prá morte de arma na mão

infâmia maior
que a grande ditadura torturando a carne
é a cotidiana corrupção de cada alma
pelos diminutos minúsculos tiranos

isso é o que nós somos
mais que corações e mentes

isso é o que nos tornamos
anos de chumbo
ditadura de burgueses do capital alheio
pacto entre os bancos e as favelas
aliança da casa grande com as senzalas

cercados pelo deserto do real
sonhos roubados convertidos em pesadelo
esperança em medo
haverá um futuro ?
o futuro precisa de nós ?

maior é Deus
pequeno sou eu
na roda da história
grande e pequeno sou eu
não tivemos a sorte de escapar
dos tempos sem sol
e da onda de lama que agora submerge
os cínicos e os servis

o que somos
dor
insuportável peso tão leve do ser

o que nos falta
como superar a dor
cálice cheio até a boca
transbordando
isso é que nós somos
isso é a nossa dor
não a afastemos
não nos afastemos dela

carecemos da compreensão que nada nos falta
somos um excesso
uma alucinação extraordinariamente nítida
que vivemos todos em comum com a fúria das almas

isso é o que nós somos
a chance de optar
entre o que eu quero
e o que a vida quer de mim

no fundo do poço
sobrevivendo ao patético momento
triste destino
sindicalistas e investidores unidos
na tragédia histórica de transformar em farsa
o que foi escrito com sangue nas estrelas

tudo o que era sólido derreteu-se no ar
o rei morreu
morram todos os reis
a arte do possível
seja a criação do impossível
como uma das possibilidades

após o fim de tudo
fantasmas rondam o Brasil
anfitriões da utopia
anunciam nada mais a se perder
senão as correntes que aprisionam
um mundo a ganhar

isso é o que nós somos
o fim
e o começo

dos escombros do velho
novamente se ergue o clamor por mudança

o que fazer

tudo é incerto
nada é inteiro
isso é o que nós somos
nevoeiro

a hora é agora
aqui nasce o futuro

precisará o futuro de nós ?

saberemos dissipar a ilusão de uma manhã gloriosa
quando enfim retornará um rei que nunca tivemos ?

saberemos que nossos sonhos são nossas armas
e só sucumbimos quando não sonhamos o bastante ?

saberemos reconhecer a falência de todos os modelos
e que só haverá um futuro
se somos capazes de continuamente reinventá-lo ?

isso é o que nós somos
país do futuro cumprindo a profecia do passado mítico
a encruzilhada do presente nos devorando com o enigma a decifrar :
quem somos ?

isso é o que nós somos, companheiro



Flores, flores para los muertos
Fernando Gabeira
18/06/2005

Sempre que os fatos ganham velocidade, costumo comprar um bloco de notas. Anoto frases, idéias, intuições e deixo que se decantem com o tempo. Volto a elas, depois, para rejeitá-las ou desenvolvê-las. A primeira frase que me veio à cabeça foi a da vendedora de flores que encerra um filme.

O pequeno bloco também tem idéias. Por exemplo: comparar a ditadura com o governo Lula. Uma neutralizou o Congresso pelo medo; o outro, pelo pagamento de mesada. Ditadura e governo Lula compartilham o mesmo desprezo pela democracia, ambos violentaram a democracia reduzindo o Parlamento a uma ruína moral.


Os militares prepararam sua saída de forma organizada. Nem muito devagar para não parecer provocação nem muito rápido para não parecer que estavam com medo. Já o núcleo duro do governo Lula parece perdido, batendo cabeça, ou melhor, enfiando-a na areia, sem perceber que a polícia está chegando e, daqui a pouco, alguém vai gritar na porta do Planalto: "Se entrega, Corisco".

Quando era menino e vivia em Juiz de Fora, fazíamos rodas de capoeira, bastante rudimentares, confesso. Mas cantávamos: "A polícia vem, que vem brava/quem não tem canoa, cai n'água"

Tudo isso jorra aos borbotões na minha caderneta. Anotei: chamar alguém do "Guinness", o livro dos recordes, para saber se algum tesoureiro de qualquer partido do mundo se desloca com batedores de motocicleta e carros clones para iludir perseguidores; se algum tesoureiro partidário se desloca com jatos particulares, semanalmente; se introduz no palácio associação de empreiteiros que receberam R$ 1,1 bilhão de dívidas.

Os militares batiam, davam choques e insultavam na sessão de tortura, mas vi muitos dizendo que me respeitavam porque deixei um bom emprego para combatê-los com risco de vida. Eles viam ideais no meu corpo arrasado pelo tiro e pela cadeia.

O PT queria que eu abrisse mão exatamente da minha alma, e me tornasse um deputado obediente, votando tudo o que o Professor Luizinho nos mandava votar. Os militares jamais pediriam isso. Desde o princípio, disseram que eu era irrecuperável e limitaram-se à tortura de rotina.

Jamais imaginei que seria grato aos torturadores por não me pedirem a alma. Não sabia que dias tão cinzentos ainda viriam pela frente. Que seria liderado por um homem que achava que Maurício de Nassau era um deputado de Pernambuco. Logo eu, que sou admirador de um deputado pernambucano chamado Joaquim Nabuco.

Foram os anos mais duros de minha vida. No meu caderno anoto frases e indicações da semelhanças da luta contra a ditadura e da luta contra este governo, desde que comecei a criticá-lo, com a importação de pneus usados. As pessoas têm suas carreiras, seus empregos, sua racionalizações. É preciso respeitá-las, atravessar o deserto sem ressentimentos.

Agora, sobretudo, é preciso respeitar o sofrimento dos vencidos. Outro dia, quando me referi a um núcleo na Casa Civil como um bando de ladrões que atentava contra a democracia, uma jovem deputada do PT estremeceu. Senti que não estava ainda preparada para essas palavras cruas. E fui percebendo pelas anotações que talvez esteja aí, para o escritor, o mais rico manancial de toda essa crise. Como estão as pessoas do PT? Como se ajustam a essa nova realidade, que destino tomaram na vida?

Procuro não confundir, entre os que ainda defendem o governo, aqueles que são cínicos cúmplices e os outros que apenas obedeceram a ordens sob a forma da aplicação do centralismo democrático. Alguns defendem porque ainda não conseguiram negociar com sua própria dor. Não podem suportá-la de frente. Mas terão de fazer algum dia, porque, por mais ingênuos que sejam, já perceberam que a mãe está no telhado.

Vamos ter de encarar juntos essa realidade. A grande experiência eleitoral da esquerda latino-americana, admirada por uma Europa desiludida com Cuba e Nicarágua, a grande novidade que verteu tintas, atraiu sábios, produziu livros e seminários, vai acabar na delegacia como um triste fato policial de roubo do dinheiro público e suborno de parlamentares.

Só os que se arriscarem a ir até o fundo dessa abjeção, compreendê-la em todos os seus detalhes mórbidos, têm chances de submergir para continuar o processo histórico. Por incrível que pareça, o Brasil continua, e a vontade de mudar é mais urgente do que em 2002. Por isso proponho agora um curto e eficaz trabalho de luto.

Anotação final: começa o espetáculo da CPI, secretárias e suas agendas, ex-mulheres e suas mágoas, arapongas, tesoureiros e seus charutos, vossa excelência para cá, vossa excelência para lá, sigilos bancários, telefônicos, emocionais.

Viu, Duda, que cenas finais melancólicas quando um mercador tenta aplicar à complexidade da política a singeleza do vendedor de sabonetes?

09 dezembro 2005

 

anti-corvos
03/12/2004


“Os que estão torcendo pelo fracasso do meu governo terão que pedir desculpas, não para mim, mas para o povo brasileiro”.
Lula - 03/12/2004

numa lúgubre noite de tempestade, quando em seu palácio se desfazia de antigas laudas de uma doutrina abandonada, um homem escuta uma suave batida à sua janela.

ao atender ao chamado do que havia de ser apenas uma visita tardia e nada mais, entram em vôo lento e solene vários corvos, tão feios e escuros como emigrados das trevas infernais.

atônito fica o homem, estremecendo a cada uma das inesperadas palavras, tão exatas e cabidas, proferidas em tom ousado pelas aves agourentas:

“não é este quem confessou fazer na oposição apenas bravatas porque nada mesmo podia então executar ?”

e diz o homem: “nunca mais”.

na alma do homem cravando um olhar implacável, sem pausa nem fadiga, como profetas e demônios exclamam os corvos com horror profundo:

“não é este quem rogou a Deus que, se fosse para repetir seu antecessor, antes lhe fosse tirada a própria vida ?”

e diz o homem: “nunca mais”.

cheio de ânsia e de medo, sente o homem abrindo seu peito as garras tenazes dos corvos a libertarem a mentira e o segredo:

“não é este quem converteu toda a luminosa esperança de uma inteira nação num repugnante acordo entre financistas e famintos, entre os bancos e os grotões ?”

e diz o homem: “nunca mais”.

com medonha frieza de um demônio a sonhar, o bando de corvos se reúne como um vulto em torno do homem, até dele não restar no chão nem mesmo uma sombra, e no regresso à tormenta, onde lá estão ainda à procura de se há bálsamo no mundo, vão repetindo os corvos seus gritos fatais:

“nunca, nunca mais."

08 dezembro 2005

 

as peças e o torneiro
28/11/2004
( a partir dos filmes “Peões” e “Entreatos” )


para D. Paulo Evaristo Arns, Lula tercerizou o governo em virtude de não estar preparado para o cargo, algo que seus opositores sempre lhe acusaram e cuja pronta refutação nunca deixou de ser feita por membros das comunidades eclesiais de base.

o pobre Lula, coitado, não passa de vítima, na opinião de Carlos Lessa, de uma insidiosa conspiração universal das elites, que o estão enganando ao se aproveitarem de sua bondosa ingenuidade.

outros juram que Lula é apenas um produto do marketing político de Duda Mendonça, criador de uma impostura tão completa que nela até o próprio Lula acabou por acreditar.

sendo inaceitável para alguns que a peãozada não se resigne ordeira e pacificamente a permanecer em seu lugar, consideram Lula como um deslumbrado penetra se encachaçando com o poder, e estão ansiosos por dele se livrarem logo na primeira chance.

Frei Beto, após iniciar a polêmica sobre a diferença entre estar no governo e estar no poder, chegou a conclusão que já era mais do que hora de encerrar a questão e sair de cena silenciosamente.

enquanto José Dirceu, tendo reservado para si o papel de eminência parda, se vê cada vez mais relegado a um modesto segundo plano, Palocci sabe do status meramente burocrático do poder que parece de fato exercer.


com certeza Brizola estaria às gargalhadas, lembrando ter avisado como o “Sapo Barbudo” é aquele tipo de esquerda tão estimado pela direita.

análises mais complexas explicam o paradoxo do governo Lula realizar o programa de FHC, demonstrando que o país inteiro, com suas combinações esdrúxulas, é como uma espécie de aberração, onde uma nova classe social, formada de um lado por técnicos e intelectuais doublés de banqueiros e do outro por trabalhadores transformados em operadores de fundos de previdência, domina o conhecimento do “mapa da mina” e tem o controle do acesso aos fundos públicos.

no entreato de frustração e perplexidade, a palavra final, como não deixaria de ser, vem do próprio Lula, ao desferir um soco na mesa garantindo que na política econômica não muda nada, e não terá vez para discutir com ele quem ousar contestá-la.

o fato revela não haver despreparo num homem que, por não aceitar posar de vítima, soube mover os peões no tabuleiro político para alcançar o objetivo a que obstinadamente se determinou.

não se procure por trás dos bastidores, pois nada há a não ser Lula, ele mesmo, puxando os cordéis e redigindo o script, o torneiro mecânico que fabrica as peças da engrenagem. Lula é o “chefe”. Lula é quem manda. Lula é o manipulador.

como confessou com empáfia, Lula jamais sentiu orgulho, e muito menos se identificou, com o macacão de operário, sendo aquele tipo de gente capaz de perder os dedos para manter os anéis.

eleito em nome da mudança que agora sequer admite cogitar, Lula realizou sua ambição pessoal de se tornar presidente porém precisou para isto do voto de milhões de anônimos, muitos deles o vendo como uma última esperança antes de nada mais restar no que se acreditar.

a despeito da manipulação das lideranças, são as massas quem movimentam a máquina, e ao outra vez entrarem em ação, como a quebra de confiança terá sido profunda e definitiva, libertarão da desilusão e da apatia o clamor pela mudança, que retornará mais forte do que nunca na história do Brasil.

07 dezembro 2005

 

Av. Chile, Rio de Janeiro – 15/08/2003 13:00 h

Chico Alencar,

Ontem, sexta-feira 15/08/2003, estive contigo na Av. Chile, por volta das 13:00 h. Você estava num carro ( com adesivos do bondinho de Santa Teresa e a estrela do PT ) e eu num táxi.

Tive a oportunidade de expressar a minha profunda decepção com a sua participação ( e a do Lindberg Farias ) na votação da "Reforma" da Previdência.

Você insistia em justificar a sua "ABSTENÇÃO", enquanto eu tentava lhe fazer, mais do que compreender, e sim sentir que não há justificativa.

Esta não é uma questão "técnica", de regimentos partidários, ou seja lá qual burocracia legal. O que está em cima da mesa são 23 anos de sonho e de luta para começar a conduzir o Brasil ao destino negado aos Brasileiros por mais de 500 anos.

Lula e o PT se converteram em traidores deste sonho e desta luta.

Lamentavelmente, e muito lamentavelmente mesmo, tornaram-se uma espécie de "último cartucho" do neoliberalismo no Brasil. Quando muito, como todo fracassado governo de Esquerda, apenas aplainam o caminho para o retorno retumbante da Direita.

Hoje, sábado 16/08/2003, tomo conhecimento que na manifestação da Rua S. José você insistiu na justificação do injustificável, enquanto os manifestantes expressavam decepção e o sentimento de terem sido traídos.

Chico, não sou funcionário público, não sou aposentado. Sou apenas um Brasileiro que acredita que o Brasil tem um grande destino, e por isto mesmo tem sido tão sabotado por toda a história.

Sou apenas um Brasileiro que acredita que nada é por acaso e que nada se constrói sem grandeza.

E, talvez a maior de todas, é a grandeza de reconhecer os próprios erros. E aproveitar os encontros fortuitos para se antecipar as conseqüências inevitáveis, e muitas vezes irreparáveis, da perda de nossa conexão com aqueles, e com aquilo, a que nos propomos servir.

Chico, ainda estão rolando os dados. O tempo não para. Suas justificativas não correspondem aos fatos, o futuro está repetindo o passado, a piscina se encheu de ratos e o Brasil é um museu de grandes novidades: o país inteiro transformado num puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro.

Nesta noite, tive um sonho. Um grande Deputado do PT, um dos mais queridos, ao chegar numa manifestação no centro do Rio de Janeiro – esta nossa tão bela e maltratada cidade – ainda remoía um encontro que tivera no trânsito da Av. Chile.

Naquele encontro se antecipara o que ocorreria na manifestação para onde o Deputado se dirigia. Assim como o desconhecido não estava disposto a aceitar justificativas sobre o injustificável, as pessoas na manifestação agiriam da mesma forma.

E o Deputado soube então, no sonho que eu tive esta noite, que não tinha opção. Subiu no carro de som, e teve a GRANDEZA de reconhecer publicamente seu erro. E foi capaz de colocar novamente a História do Brasil em movimento...

"Grande Pátria desimportante, em nenhum instante eu vou te trair. Não, não vou te trair".



06 dezembro 2005

 


o "nosso" governo
05/10/2003
( sobre "Declaração de Voto", de Wladimir Pomar )


a medida em que, lamentavelmente, o Governo Lula se afirma, em sua prática, como o 3º mandato de FHC, vão se reduzindo as justificativas da parcela da Esquerda que ainda teima em defendê-lo.

então, chegamos ao argumento definitivo : "mesmo que fosse contra todas as políticas do Governo Lula, ainda assim seria a favor dele."

mais do que esquizofrenia política, tal linha de raciocínio se constitui num grave problema de ética. Não importa que o "nosso" governo tenha uma prática contrária aos "nossos" interesses, ainda assim é o "nosso" governo e cabe a "nós" defendê-lo a todo custo até o último instante.

do mesmo modo que a elite dominante Brasileira nunca teve um projeto para o país, e sim para si própria, o Governo Lula sofre do mesmo mal.

por isto é um erro falar em tática e estratégia, no sentido amplo, em relação a um governo cujo foco é a manutenção de sua condição de governabilidade, de forma a assegurar que seus membros permaneçam na estrutura de poder.

e nisto não há novidade alguma. Posto que a corrente dominante dentro do Governo Lula tem feito exato o mesmo no âmbito interno do PT, colocando não só o partido, como até o movimento social, a serviço de sua hegemonia.

assim sendo, considerar como "concessões táticas" a capitulação voluntária do Governo Lula ao neoliberalismo é não compreender o que há de mais específico na natureza deste governo: sua completa falta de pudor em lançar mão de qualquer meio que viabilize sua continuidade enquanto governo.

resta saber se os 52 trabalhadores rurais assassinados durante o Governo Lula, até o momento, também devem ser computados no rol das "concessões".

seja como for, fazer concessões com a vida alheia, assim como com o destino de uma nação inteira, não é apenas um tanto conveniente como absolutamente repugnante.

a esperança dos milhões de eleitores de Lula rapidamente está se convertendo em frustração, nojo e revolta. Em vez de exaurimos nossa melhor energia na defesa do indefensável, é bem mais produtivo começar, desde já, a construir uma alternativa para quando sobrevier o inevitável.

uma derrota do Governo Lula não implica necessariamente no fracasso daquilo que o tornou possível, e que, em hipóteses alguma, a ele está limitado.

temos um mundo a ganhar. Cabe a nós não por tudo a perder.

05 dezembro 2005

 


dormindo com o inimigo
25/08/2003
( sobre "O Inimigo Principal", de Wladimir Pomar )


Há um fenômeno que parece recorrente na história da esquerda brasileira: parte das próprias forças se transforma em forças inimigas, principalmente em função de interesses escusos.

Lendo boa parte da produção recente de textos e cartas de intelectuais e ativistas da esquerda, em geral petistas, nota-se a fanática insistência com que eles defendem o PT e Lula, não só devido a um certo masoquismo da esquerda, como por sua atávica incapacidade de assumir prontamente os próprios erros.

No esforço de demonstrar o acerto dessa atitude, recorrem até a Marx e Lênin. Infelizmente, no caso de Lênin, omitem que seus equívocos políticos e econômicos foram o ovo da serpente do Gulag soviético. Não é sem motivo que, em seu tempo, ele foi chamado de traidor por fazer a paz com a Alemanha, contra os que pretendiam dar amplitude mundial à revolução. Não dizem também que ele esmagou impiedosamente a insurreição dos "companheiros" anarquistas, enquanto apelou ao apoio de setores da burguesia russa e internacional para levar adiante a Nova Política Econômica - NEP, um enorme recuo estratégico (não só tático) em relação aos objetivos que a revolução tinha se proposto.

Para completar, também não se deve esquecer que Lênin sofreu um atentado realizado pelos "socialistas revolucionários", e não pela direita russa, que o considerava como "parceiro confiável".

Nesse sentido, a história puniu exemplarmente Lênin, e não apenas em relação aos seus recuos estratégicos e táticos, entre 1918 e 1921. Jamais a Rússia se tornou socialista, convertendo-se num repulsivo regime autoritário que findou caindo de podre, resultando em desmoralização a nível mundial das "bandeiras da esquerda".

Assim, um dos aspectos universais dessa experiência consiste em que é um erro não reconhecer quando parte das próprias forças se torna inimiga, sob o argumento de se tratar meramente de discrepâncias em torno da tática, ou mesmo de recuos estratégicos relacionados com a correlação real de forças. Toda vez que isso ocorreu, a esquerda foi derrotada. Talvez seja útil refletir sobre tudo isso toda vez que um passional apoio ao governo Lula ofusque o raciocínio e impeça de considerá-lo como inimigo.


"Se o petismo não estiver minimamente preparado para isto [ a retomada do movimento social ], poderá ocorrer com ele o mesmo que ocorreu com a velha esquerda e seus dogmas na segunda metade dos anos 70, atropelada tanto pela reciclagem da ditadura de classe da burguesia como pelo novo sindicalismo e pelo novo movimento popular que se fundiram na criação do PT. Em vez de disputar a hegemonia com vantagem para chegar ao poder, terá que correr atrás do prejuízo para não ser varrido ou ananicado, como o velho partidão comunista."

"Um mundo a ganhar"
Wladimir Pomar

O inimigo principal
Wladimir Pomar

Há um fenômeno que parece recorrente na história da esquerda brasileira: transformar parte das próprias forças em forças inimigas, principalmente em função de divergências táticas. Lendo boa parte da produção recente de textos e cartas de intelectuais e ativistas da esquerda, em geral petistas, nota-se a rapidez com que eles tomam o PT e Lula como inimigos principais e alvos, não só de suas frustrações, mas de sua ira. Em grande parte dos casos já não se trata de discordâncias pontuais, mas da oposição entre "nós" e "eles".

No esforço de demonstrar o acerto dessa atitude, recorrem até a Marx e Lênin. Infelizmente, no caso de Lênin, muitos se esquecem que ele venceu uma revolução, não uma eleição. Omitem que, em seu tempo, ele foi chamado de traidor por fazer a paz com a Alemanha, contra os que pretendiam dar amplitude mundial à revolução. Não dizem que ele se viu obrigado a esmagar a insurreição dos "companheiros" anarquistas, que o tomaram como inimigo. Nem que teve de apelar, logo após o esgotamento do "comunismo de guerra", ao apoio de setores da burguesia russa e internacional para levar adiante a Nova Política Econômica - NEP, um enorme recuo estratégico (não só tático) em relação aos objetivos que a revolução tinha se proposto.

Para completar, também não se deve esquecer que Lênin morreu prematuramente em conseqüência dos ferimentos de um atentado realizado não pela direita russa, mas pelos "socialistas revolucionários", que se consideravam a "verdadeira esquerda". Ou seja, se queremos apelar aos clássicos, é sempre útil, como ensina a história, contextualizar o que eles disseram e medir os resultados práticos, já que a maior parte do que afirmaram ou escreveram somente foi válida para situações históricas particulares.

Nesse sentido, a história deu razão tanto à audácia de Lênin, ao aproveitar a situação revolucionária russa, em 1917, para conquistar o poder, quanto aos seus recuos estratégicos e táticos, entre 1918 e 1921, tendo em vista a situação real da Rússia e a correlação de forças internacionais. E aqueles que o tomaram como inimigo principal somente conseguiram aumentar as dificuldades com que se defrontava o novo poder.

Assim, um dos aspectos universais dessa experiência consiste em que é um erro tomar como inimigos parte das próprias forças e os amigos e aliados, em virtude de discrepâncias em torno da tática, ou mesmo de certos recuos estratégicos relacionados com a correlação real de forças. Toda vez que isso ocorreu, os verdadeiros inimigos principais é que se aproveitaram para derrotar a esquerda. Talvez seja útil refletir sobre tudo isso toda vez que nossa discordância com o governo Lula acender a tentação de considerá-lo como inimigo.

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