16 março 2006
hamlet
insurrecto
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insurrecto
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Hamlet insurrecto
Ato 1
O Rei e o Espectro
"Em cada época marcante de sua história, a sociedade brasileira tem sido levada a pensar-se novamente. É como ela se debruçasse sobre si mesma: curiosa, inquieta, atônita, imaginosa. Não só se formulam novas interpretações como se renovam as anteriores.
O Rei e o Espectro
"Em cada época marcante de sua história, a sociedade brasileira tem sido levada a pensar-se novamente. É como ela se debruçasse sobre si mesma: curiosa, inquieta, atônita, imaginosa. Não só se formulam novas interpretações como se renovam as anteriores.
Acontece que o presente problemático, difícil ou inovador, desafia o entendimento da sociedade, as explicações conhecidas.
As forças sociais predominantes em cada época são levadas a pensar os desafios com os quais se defrontam, os objetivos que pretendem alcançar, os aliados e opositores com os quais negociar, os interesses próprios e alheios que precisam interpretar. Ao pensar o presente, são obrigadas a repensar o passado, buscar e rebuscar continuidades, rupturas e inovações. Mesmo quando pretendem o futuro, são postas a pensar outra vez o passado, acomodá-lo ao presente, ou até mesmo transformá-lo em matriz do devir" [1]
Rei : “Um fantasma ronda o meu reino.” [2]
“Assombra permanentemente o castelo, ameaçando o trono e a coroa. Como um teimoso, sempre volta mais uma vez, resistindo a todos os golpes perpetrados contra ele.” [3]
Espectro : Ouve-me !
Rei : Eu sou o Rei morto. Como mortos deveriam estar todos os reis.
Espectro : Ouve-me !
Rei : Eu sou o Rei posto. Como postos estão todos os reis.
Espectro : Pela terceira vez: ouve-me !
Rei : Escuta, escuta ! Oh, Escuta !
“Assassinato infame, como sempre é; mas este é o mais infame, horrendo e monstruoso.
Oh ! Maldito engenho e pérfidas dádivas que possuem tal poder de sedução !
Disseram que estando dormindo em meu jardim, fui mordido por uma serpente; deste modo todos foram grosseiramente enganados com esta fabulosa história de meu falecimento.
A serpente que me tirou a vida, usa agora a coroa que me pertencia.” [4]
Espectro : “Oh ! Infâmia ! Detém-te, detém-te, meu coração.” [5]
Qual o maior crime: destronar ou coroar um Rei.
“Nos livros vem o nome dos reis, mas foram os reis que transportaram as pedras ?
Quem ergueu os arcos de triunfo ?
Em cada página uma vitória. E quem pagava as despesas ?
E ninguém mais ?” [6]
Rei : Hamlet ! Hamlet ! Algum dia todo esse reino será seu.
“Vinga-me o torpe assassinato !
Não permitas que o leito real seja boda de incesto e luxúria.”
Hamlet ! Hamlet !
“Num só golpe sinistro derruba ferozmente tantos príncipes.
Atos sanguinários, julgamentos precipitados, mortes fortuitas, pela astúcia ou pela violência. Erros e intrigas trazendo desgraças. Vinga-me, Hamlet, o torpe assassinato !” [7]
“Um reino por um assassino.” [8]
“Sejam de sangue seus pensamentos, ou só mereçam o esquecimento !” [9]
Hamlet !
Banhe de sangue o castelo.
“Escave o solo uns palmos mais abaixo, fazendo numa mesma estrada chocar-se um ardil contra outro ardil.” [10]
Então, mate Polônio. Enlouqueça Ofélia e a arraste ao suicídio. Faça com que a Rainha brinde da taça envenenada. E Laerte caia morto na própria armadilha. Mate o Rei assassino com o veneno que ele mesmo preparou. Então completa sua obra. Morra, Hamlet ! Morra ! Desgraças, infortúnio, tragédia ! Morra,Hamlet !
Fortimbrás herdará o reino e minha vingança será completa !
“Adue, adue, Hamlet. Lembra-te de mim.” [11]
Espectro : Reis sucedem reis, perpetuando a dinastia de infâmia e horrores.
“Há algo de podre no reino da Dinamarca” [12]
Os Reis se alimentam da vingança e da tragédia.
“O Rei morreu ! Morram todos os Reis!” [13]
Eu era o Espectro.
“Atrás de mim, as ruínas da esperança.” [14]
Eu não sou o Espectro.
“Eu não interpreto mais nenhum papel.
Eu não sou mais um ator.
A esperança não se cumpriu. Três anos depois...” [15]
Eu sou o espírito daquilo que foi traído. E a vingança não me seduz. Tenho sede e fome de justiça.
Eu dormia eternamente deitado em meu berço esplêndido.
“Foi durante o meu sono, pela mão de um irmão, que perdi ao mesmo tempo a vida, a coroa, a rainha.” [16]
Sobre o meu caixão se casaram Casa Grande e a Senzala; em meu túmulo copulam os bancos e as favelas.
“Algo está podre nesta época de esperança.” [17]
A tragédia histórica de transformar em farsa o que foi escrito com sangue nas estrelas.
“Sonhos roubados convertidos em pesadelo. Esperança em medo. Haverá um futuro ? O futuro precisa de nós ? Isso é o que nós somos, o fim e o começo.” [18]
“Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro. Hamlet, hoje és nevoeiro... A hora é agora.” [19]
“Nada a perder, senão os grilhões. E um mundo a ganhar.” [20]
Rei : “Jurai ! Jurai !” [21]
Espectro : Jurai ?
“Sabemos o que somos ? Sabemos o que poderemos ser?” [22]
“Esta é a mais terrível de nossas heranças. Somos carne da carne de escravos e de senhores de escravos.” [23]
Jurai ?
“Oh ! Vingança ! Que estúpido sou eu !” [24]
"Em nenhum momento tão grande foi a distância entre o que somos e o que esperávamos ser." [25]
Jurai ?
“Uma promessa sem fé em si mesma, sem fé no povo, rosnando para os de cima, tremendo diante dos de baixo, egoísta em relação aos dois lados e consciente de seu egoísmo, revolucionária contra os conservadores, conservadora contra os revolucionários; desconfiada de suas próprias palavras de ordem, frases em lugar de idéias, intimidada pela tempestade mundial, mas dela desfrutando – sem energia, em nenhum sentido, plagiaria em todos os sentidos, vulgar porque não era original e original na vulgaridade – traficando com seus próprios desejos...” [26]
Eu sou o espírito daquilo que foi traído. E a vingança não me seduz. Tenho sede e fome de justiça.
Eu sou a mais vil traição. Eu sou a esperança de um povo reduzida a mentira e ao segredo.
“O mundo está fora dos eixos. Maldita sorte ! Haverá já nascido algum Hamlet para colocá-lo em ordem ?” [27]
[1] “A idéia de Brasil moderno”, Octávio Ianni
[2] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[3] “Um mundo a ganhar, Wladimir Pomar
[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[5] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[6] “Perguntas de um operário que lê”, Bertold Brecht
[7] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[8] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[9] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[10] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[11] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[12] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Marcelo
[13] “Isso é o que nós somos, companheiro”, arkx
[14] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[15] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[16] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[17] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[18] “Isso é o que nós somos, companheiro”, arkx
[19] “Mensagem”, Fernando Pessoa
[20] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[21] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[22] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Ofélia
[23] “O Povo Brasileiro”, Darcy Ribeiro
[24] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[25] “A Busca de Novo Horizonte Utópico ”, Celso Futado
[26] “A Burguesia e a Contra-Revolução, , Karl Marx
[27] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
Espectro : Ouve-me !
Rei : Eu sou o Rei morto. Como mortos deveriam estar todos os reis.
Espectro : Ouve-me !
Rei : Eu sou o Rei posto. Como postos estão todos os reis.
Espectro : Pela terceira vez: ouve-me !
Rei : Escuta, escuta ! Oh, Escuta !
“Assassinato infame, como sempre é; mas este é o mais infame, horrendo e monstruoso.
Oh ! Maldito engenho e pérfidas dádivas que possuem tal poder de sedução !
Disseram que estando dormindo em meu jardim, fui mordido por uma serpente; deste modo todos foram grosseiramente enganados com esta fabulosa história de meu falecimento.
A serpente que me tirou a vida, usa agora a coroa que me pertencia.” [4]
Espectro : “Oh ! Infâmia ! Detém-te, detém-te, meu coração.” [5]
Qual o maior crime: destronar ou coroar um Rei.
“Nos livros vem o nome dos reis, mas foram os reis que transportaram as pedras ?
Quem ergueu os arcos de triunfo ?
Em cada página uma vitória. E quem pagava as despesas ?
E ninguém mais ?” [6]
Rei : Hamlet ! Hamlet ! Algum dia todo esse reino será seu.
“Vinga-me o torpe assassinato !
Não permitas que o leito real seja boda de incesto e luxúria.”
Hamlet ! Hamlet !
“Num só golpe sinistro derruba ferozmente tantos príncipes.
Atos sanguinários, julgamentos precipitados, mortes fortuitas, pela astúcia ou pela violência. Erros e intrigas trazendo desgraças. Vinga-me, Hamlet, o torpe assassinato !” [7]
“Um reino por um assassino.” [8]
“Sejam de sangue seus pensamentos, ou só mereçam o esquecimento !” [9]
Hamlet !
Banhe de sangue o castelo.
“Escave o solo uns palmos mais abaixo, fazendo numa mesma estrada chocar-se um ardil contra outro ardil.” [10]
Então, mate Polônio. Enlouqueça Ofélia e a arraste ao suicídio. Faça com que a Rainha brinde da taça envenenada. E Laerte caia morto na própria armadilha. Mate o Rei assassino com o veneno que ele mesmo preparou. Então completa sua obra. Morra, Hamlet ! Morra ! Desgraças, infortúnio, tragédia ! Morra,Hamlet !
Fortimbrás herdará o reino e minha vingança será completa !
“Adue, adue, Hamlet. Lembra-te de mim.” [11]
Espectro : Reis sucedem reis, perpetuando a dinastia de infâmia e horrores.
“Há algo de podre no reino da Dinamarca” [12]
Os Reis se alimentam da vingança e da tragédia.
“O Rei morreu ! Morram todos os Reis!” [13]
Eu era o Espectro.
“Atrás de mim, as ruínas da esperança.” [14]
Eu não sou o Espectro.
“Eu não interpreto mais nenhum papel.
Eu não sou mais um ator.
A esperança não se cumpriu. Três anos depois...” [15]
Eu sou o espírito daquilo que foi traído. E a vingança não me seduz. Tenho sede e fome de justiça.
Eu dormia eternamente deitado em meu berço esplêndido.
“Foi durante o meu sono, pela mão de um irmão, que perdi ao mesmo tempo a vida, a coroa, a rainha.” [16]
Sobre o meu caixão se casaram Casa Grande e a Senzala; em meu túmulo copulam os bancos e as favelas.
“Algo está podre nesta época de esperança.” [17]
A tragédia histórica de transformar em farsa o que foi escrito com sangue nas estrelas.
“Sonhos roubados convertidos em pesadelo. Esperança em medo. Haverá um futuro ? O futuro precisa de nós ? Isso é o que nós somos, o fim e o começo.” [18]
“Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro. Hamlet, hoje és nevoeiro... A hora é agora.” [19]
“Nada a perder, senão os grilhões. E um mundo a ganhar.” [20]
Rei : “Jurai ! Jurai !” [21]
Espectro : Jurai ?
“Sabemos o que somos ? Sabemos o que poderemos ser?” [22]
“Esta é a mais terrível de nossas heranças. Somos carne da carne de escravos e de senhores de escravos.” [23]
Jurai ?
“Oh ! Vingança ! Que estúpido sou eu !” [24]
"Em nenhum momento tão grande foi a distância entre o que somos e o que esperávamos ser." [25]
Jurai ?
“Uma promessa sem fé em si mesma, sem fé no povo, rosnando para os de cima, tremendo diante dos de baixo, egoísta em relação aos dois lados e consciente de seu egoísmo, revolucionária contra os conservadores, conservadora contra os revolucionários; desconfiada de suas próprias palavras de ordem, frases em lugar de idéias, intimidada pela tempestade mundial, mas dela desfrutando – sem energia, em nenhum sentido, plagiaria em todos os sentidos, vulgar porque não era original e original na vulgaridade – traficando com seus próprios desejos...” [26]
Eu sou o espírito daquilo que foi traído. E a vingança não me seduz. Tenho sede e fome de justiça.
Eu sou a mais vil traição. Eu sou a esperança de um povo reduzida a mentira e ao segredo.
“O mundo está fora dos eixos. Maldita sorte ! Haverá já nascido algum Hamlet para colocá-lo em ordem ?” [27]
[1] “A idéia de Brasil moderno”, Octávio Ianni
[2] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[3] “Um mundo a ganhar, Wladimir Pomar
[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[5] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[6] “Perguntas de um operário que lê”, Bertold Brecht
[7] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[8] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[9] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[10] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[11] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[12] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Marcelo
[13] “Isso é o que nós somos, companheiro”, arkx
[14] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[15] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[16] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[17] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[18] “Isso é o que nós somos, companheiro”, arkx
[19] “Mensagem”, Fernando Pessoa
[20] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[21] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[22] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Ofélia
[23] “O Povo Brasileiro”, Darcy Ribeiro
[24] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[25] “A Busca de Novo Horizonte Utópico ”, Celso Futado
[26] “A Burguesia e a Contra-Revolução, , Karl Marx
[27] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
Hamlet insurrecto
Ato 2
Ser ou não ser Hamlet
“Estamos condenados à civilização.
Ou progredimos, ou desaparecemos.” [1]
Hamlet : “A questão de todas as questões: ser ou não ser. Que é mais nobre para a alma: sofrer os dardos de um destino cruel, ou pegar em armas contra um mar de calamidades e contra elas lutar até dar-lhes fim.” [2]
(O Espectro vaga pelo palco, delira a história do Brasil)
Espectro : “Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.” [3]
Hamlet : “Morrer... dormir; nada mais ! Morrer... dormir ! ... Talvez sonhar ! Sim, eis a dificuldade !” [4]
Espectro : “Esqueçam ! Esqueçam tudo o que escrevi...” [5]
“Não me deixem só !” [6]
“Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração. A mim não falta a coragem da renúncia.” [7]
“Laços fora ! Independência ou morte !” [8]
“Antes que algum aventureiro lance mão.” [9]
Hamlet : “Todos os acontecimentos me acusam, impelindo-me à minha triste vingança! Que papel, então, estou fazendo. Por quê deixo que tudo durma em paz ?” [10]
Espectro : “Longe vá... temor servil. Os grilhões que nos forjava da perfídia astuto ardil. Não temais ímpias falanges que apresentam face hostil. Vossos peitos, vossos braços. Já com garbo varonil.” [11]
Hamlet : “Algum tímido escrúpulo de pensar nas consequências com excessiva minúcia (reflexão esta que de quatro partes tem uma só de prudência e sempre três de covardia), não compreendo porque vivo ainda para dizer: ‘Isto ainda está por fazer’, visto que tenho motivo, vontade, força e meios para fazê-lo.” [12]
Espectro : “Há outro caminho possível.” [13]
“Mudei de idéia, sim. E daí ?” [14]
“Para fazer o mesmo que o meu antecessor, eu prefiro antes Deus me tirar a vida.” [15]
“Eu não mudei. É a vida que muda.” [16]
Hamlet : “E é assim que a consciência nos transforma em covardes, é assim que a força inicial de nossas resoluções se debilita na pálida sombra do pensamento e é assim que as empreitadas de maior alento e importância deixam de ter o nome de ação.” [17]
Espectro : “Como repousar meu coração inquieto, se mais uma vez sucumbimos por não sermos capazes de sonhar o bastante.” [18]
Se não dissipamos a névoa da ilusão de uma manhã gloriosa, quando, enfim, vindo da terceira margem do rio, retornará um Rei que nunca tivemos ?
“Se toda a realidade é um excesso, uma violência, uma alucinação extraordinariamente nítida, que vivemos todos em comum com a fúria das almas.” [19]
Hamlet : “Estamos agora exatamente na hora dos feitiços noturnos, quando os cemitérios bocejam e o próprio inferno solta seu sopro pestilento sobre o mundo ! Seria, agora, bem capaz de beber sangue quente e fazer tais horrores que o dia ficaria trêmulo só de contemplá-los !” [20]
Espectro : “Não te esqueças.” [21]
“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não escolhem as circunstâncias, que são o legado do passado.” [22]
Hamlet : Questões e mais questões que me esmagam sob o peso da dúvida, da incerteza, da indecisão...
Devo me entregar de corpo e alma ao mar de sangue da vingança ?
Ou aceitar a mansa resignação do pacto palaciano ?
Mais vale se desfazer dos escrúpulos e conservar o reino; ou não abrir mão dos princípios e junto com o reino perder a própria vida ?
Qual o caminho da justiça ?
“Maldita sorte ! Como recolocar em ordem um mundo fora dos eixos ?” [23]
Espectro : “Não te esqueças. Não te esqueças.” [24]
[1] ”Os Sertões”, Euclides da Cunha
[2] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[3] “Carta Testamento”, Getúlio Vargas
[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[5] Fernando Henrique Cardoso
[6] Fernando Collor, 22/06/1992
[7] Jânio Quadros, 25/08/1961
[8] D.Pedro I,07/09/1822
[9] D. João VI
[10] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[11] “Hino da Independência”, música: D.Pedro I, letra: Evaristo da Veiga
[12] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[13] “Carta ao povo brasileiro”, Luiz Inácio Lula da Silva, 22/06/2002
[14] José Dirceu, 05/2003
[15] Luiz Inácio Lula da Silva, 09/2002
[16] Luiz Inácio Lula da Silva, 05/2003
[17] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[18] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet; “O Marinheiro”, Fernando Pessoa
[19] “Afinal”, Álvaro de Campos
[20] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[21] “Hamlet”, Shakespeare
[22] “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, Karl Marx
[23] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[24] “Hamlet”, Shakespeare
Ato 2
Ser ou não ser Hamlet
“Estamos condenados à civilização.
Ou progredimos, ou desaparecemos.” [1]
Hamlet : “A questão de todas as questões: ser ou não ser. Que é mais nobre para a alma: sofrer os dardos de um destino cruel, ou pegar em armas contra um mar de calamidades e contra elas lutar até dar-lhes fim.” [2]
(O Espectro vaga pelo palco, delira a história do Brasil)
Espectro : “Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.” [3]
Hamlet : “Morrer... dormir; nada mais ! Morrer... dormir ! ... Talvez sonhar ! Sim, eis a dificuldade !” [4]
Espectro : “Esqueçam ! Esqueçam tudo o que escrevi...” [5]
“Não me deixem só !” [6]
“Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração. A mim não falta a coragem da renúncia.” [7]
“Laços fora ! Independência ou morte !” [8]
“Antes que algum aventureiro lance mão.” [9]
Hamlet : “Todos os acontecimentos me acusam, impelindo-me à minha triste vingança! Que papel, então, estou fazendo. Por quê deixo que tudo durma em paz ?” [10]
Espectro : “Longe vá... temor servil. Os grilhões que nos forjava da perfídia astuto ardil. Não temais ímpias falanges que apresentam face hostil. Vossos peitos, vossos braços. Já com garbo varonil.” [11]
Hamlet : “Algum tímido escrúpulo de pensar nas consequências com excessiva minúcia (reflexão esta que de quatro partes tem uma só de prudência e sempre três de covardia), não compreendo porque vivo ainda para dizer: ‘Isto ainda está por fazer’, visto que tenho motivo, vontade, força e meios para fazê-lo.” [12]
Espectro : “Há outro caminho possível.” [13]
“Mudei de idéia, sim. E daí ?” [14]
“Para fazer o mesmo que o meu antecessor, eu prefiro antes Deus me tirar a vida.” [15]
“Eu não mudei. É a vida que muda.” [16]
Hamlet : “E é assim que a consciência nos transforma em covardes, é assim que a força inicial de nossas resoluções se debilita na pálida sombra do pensamento e é assim que as empreitadas de maior alento e importância deixam de ter o nome de ação.” [17]
Espectro : “Como repousar meu coração inquieto, se mais uma vez sucumbimos por não sermos capazes de sonhar o bastante.” [18]
Se não dissipamos a névoa da ilusão de uma manhã gloriosa, quando, enfim, vindo da terceira margem do rio, retornará um Rei que nunca tivemos ?
“Se toda a realidade é um excesso, uma violência, uma alucinação extraordinariamente nítida, que vivemos todos em comum com a fúria das almas.” [19]
Hamlet : “Estamos agora exatamente na hora dos feitiços noturnos, quando os cemitérios bocejam e o próprio inferno solta seu sopro pestilento sobre o mundo ! Seria, agora, bem capaz de beber sangue quente e fazer tais horrores que o dia ficaria trêmulo só de contemplá-los !” [20]
Espectro : “Não te esqueças.” [21]
“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não escolhem as circunstâncias, que são o legado do passado.” [22]
Hamlet : Questões e mais questões que me esmagam sob o peso da dúvida, da incerteza, da indecisão...
Devo me entregar de corpo e alma ao mar de sangue da vingança ?
Ou aceitar a mansa resignação do pacto palaciano ?
Mais vale se desfazer dos escrúpulos e conservar o reino; ou não abrir mão dos princípios e junto com o reino perder a própria vida ?
Qual o caminho da justiça ?
“Maldita sorte ! Como recolocar em ordem um mundo fora dos eixos ?” [23]
Espectro : “Não te esqueças. Não te esqueças.” [24]
[1] ”Os Sertões”, Euclides da Cunha
[2] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[3] “Carta Testamento”, Getúlio Vargas
[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[5] Fernando Henrique Cardoso
[6] Fernando Collor, 22/06/1992
[7] Jânio Quadros, 25/08/1961
[8] D.Pedro I,07/09/1822
[9] D. João VI
[10] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[11] “Hino da Independência”, música: D.Pedro I, letra: Evaristo da Veiga
[12] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[13] “Carta ao povo brasileiro”, Luiz Inácio Lula da Silva, 22/06/2002
[14] José Dirceu, 05/2003
[15] Luiz Inácio Lula da Silva, 09/2002
[16] Luiz Inácio Lula da Silva, 05/2003
[17] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[18] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet; “O Marinheiro”, Fernando Pessoa
[19] “Afinal”, Álvaro de Campos
[20] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[21] “Hamlet”, Shakespeare
[22] “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, Karl Marx
[23] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[24] “Hamlet”, Shakespeare
Hamlet insurrecto
Ato 3
Polônio e a utopia do possível [1]
“A modernização, pelo seu toque voluntário, senão voluntarista, chega à sociedade por meio de um grupo condutor, que, privilegiando-se, privilegia os setores dominantes.
A modernização, quer se chame industrialização, revolução passiva, via prussiana, revolução do alto – ela é uma só, com um vulto histórico, com muitas máscaras, tantas quantas as das diferentes situações históricas.
A história que daí resulta será uma crônica de déspotas, de elites, de castas, nunca a história que realiza, aperfeiçoa e desenvolve. A história, assim fossilizada, é um cemitério de projetos, de ilusões e de espectros. O povo, por esse meio, não participa da mudança: ele a padece.
Desta vez, os espectros vagam nas ruas,sem emprego, miseráveis, depois de, perdendo tudo, perderem a esperança.” [2]
Hamlet : “Olha, Polônio. Um fantasma assombra o país. Tremem à presença dele e para conjurá-lo se unem.” [3]
Polônio : “Não vejo nada; todavia estou vendo tudo quanto nos cerca.” [4]
Hamlet : “Como ! Olhai para ele ! Vede seu pálido cintilar ! Sua presença e sua causa, juntas, pregando para as pedras, chegariam a comovê-las !” [5]
Polônio : “É pura invenção de teu espírito. O delírio é muito hábil nessas quiméricas invenções.” [6]
Hamlet : “Delírio ? Se fosse loucura, fugiria aos pulos...
Não derrameis sobre vossa alma a unção lisonjeadora de acreditar que não é vosso delito que fala, mas minha demência.
Nestes tempos, a própria virtude tem de pedir perdão ao vício e ainda deve prostrar-se a seus pés, implorando-lhe permissão para fazer-lhe o bem.” [7]
Polônio : “Grande verdade dizes, meu senhor.” [8]
Hamlet : “Estais vendo ali aquela nuvem, que tem a forma de um vaidoso pássaro ? Olhai que bico excelso ! ” [9]
“De que espécie de bom camarada será membro ?” [10]
Polônio : “Dos Brasis, não é ? Bela plumagem e carne ruim.” [11]
Hamlet : “Sim, tão estranho e feioso que parece uma mistura de pato com réptil.” [12]
Polônio : “É verdade ! Que combinações esdrúxulas ! Uma espécie de aberração! Uma nova classe ! Truncada e sem remissão...” [13]
Hamlet : Não seria um sapo ?
Polônio : “Pelos céus ! E tem barbas ! Como o vamos engolir ?” [14]
Hamlet : Não se ocupe disto. É ele quem vai nos deglutir, sugando nossos sonhos pela sua cloaca imunda. Com a voracidade de um buraco negro, arrasta toda esperança para o coração das trevas.
Polônio : “Que estranha borboleta !
No apogeu da juventude,
protagoniza seu ocaso,
voltando ao casulo
para morrer como lagarta...” [15]
Hamlet : Mas, por falar em animais, aqui estou vendo um rato ? [16]
“Ou é uma criança grande com fraldas ?” [17]
(Hamlet aponta para Polônio)
Polônio : “Será que me conheceis, senhor ?”
Hamlet : “Perfeitamente bem. És quem vende peixes.”
Polônio : “Não eu, meu senhor.”
Hamlet : “Mesmo o Sol que é um deus, se beija cadáver putrefato, gera larva num cão morto...” [18]
Não devias estar na ceia ? [19]
Polônio : Na ceia ?! Onde ?
Hamlet : “Sim. Na ceia. Mas não ceando. Estás melhor sendo comido. Um homem pode pescar com o verme que se alimentou de um rei e comer o peixe que se nutriu daquele verme.” [20]
Polônio : “Que queres dizer com isto ?”
Hamlet : “Nada; simplesmente mostrar-vos como um rei pode circular pelas tripas de um mendigo.” [21]
Posto isto, caro conselheiro, muito cuidado... Não nos deixemos inocular pela mosca azul...
(Hamlet pega um livro e começa a ler)
Polônio : “Que estás lendo, meu senhor ?”
Hamlet : “Palavras, nada mais que palavras...”
Polônio : “Quero dizer: qual o assunto que estais lendo, meu senhor ?” [22]
(Hamlet lê em voz alta)
Hamlet : “De repente, dei-me conta de que navegávamos para oeste, quando todos os planos orientavam-nos a leste. Não me restava alternativa: prosseguir no barco ou atirar-me no rio. Livrei-me da roupa e da bagagem e, abraçado a um cacho de valores, mergulhei. Nadei até a terceira margem do rio, esgueirei-me das piranhas e dos jacarés em busca de mim mesmo.” [23]
(Hamlet volta-se para Polônio)
Hamlet : Falamos tanto de bichos, que até poderíamos fazer uma revolução...
Polônio : Não me agrada em nada a idéia, meu senhor. Revoluções são muito perigosas. É sempre preferível uma modernização que conserve o acordo das elites. [24]
Hamlet : “Então, astuto conselheiro real, cujas intrigas tem a pretensão de enganar até a Deus, estás ou não convencido haver entre o céu e a terra mais coisas do que sonha tua vã filosofia ?” [25]
Polônio : “Meu nobre príncipe, dadas as circunstâncias, é meu conselho lidar com o mal menor enquanto o bem maior se mostra inalcançável.” [26]
Hamlet : “É terrível que o homem se resigne tão facilmente com o existente, não só com as dores alheias, mas também com as suas próprias.” [27]
Polônio : “Fôssemos infinitos, tudo mudaria. Como somos finitos, muito permanece.” [28]
Hamlet : Como saber se um rei é justo ?
Polônio : Se doa esmolas aos pobres e distribui juros aos ricos.
Hamlet : “Pelo que vejo, fazeis o possível com vossa arte...” [29]
Polônio : “Sem dúvidas, meu senhor. Minhas utopias são todas realistas.” [30]
Hamlet : “Que fizeste à Fortuna para que ela vos enviasse para esta prisão ?”
Polônio : “Prisão, meu senhor ?”
Hamlet : “Este país é uma prisão...”
Polônio : “Neste caso, o mundo também é.”
Hamlet : “Uma enorme prisão, na qual existem muitas celas, masmorras e calabouços. E este país é um dos piores.”
Polônio : “Não penso assim, meu senhor.” [31]
Hamlet : “Um satírico maledicente diria que os velhos têm a barba grisalha, a pele enrugada, com olhos que purgam espesso âmbar, que são cheios de ausência de espírito, juntamente com fraquíssimas nádegas. Calúnia ! Não o penso assim nestes termos, porque mesmo vós, tão velho quanto eu ficaríeis, caso pudésseis andar para trás como um caranguejo.” [32]
(Hamlet muda subitamente de assunto)
Hamlet : “Não tendes uma filha ?” [33]
[1] Fernando Henrique Cardoso, 2002
[2] ”A questão nacional: a modernização”, Raymundo Faoro
[3] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha
[5] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[6] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha
[7] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[8] “Hamlet”, Shakespeare
[9] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[10] “O Vigarista”, Herman Melville, acerca do tucano
[11] “O Vigarista”, Herman Melville, acerca do tucano
[12] “O Ornitorrinco”, Francisco de Oliveira
[13] “O Ornitorrinco”, Francisco de Oliveira
[14] Leonel Brizola, 1989
[15] “PT viveu como borboleta, mas morre como lagarta”, Josias de Souza
[16] “Hamlet”, Shakespeare – morte de Polônio
[17] “Hamlet”, Shakespeare
[18] “Hamlet”, Shakespeare
[19] “Hamlet”, Shakespeare – sobre Polônio
[20] “Hamlet”, Shakespeare
[21] “Hamlet”, Shakespeare
[22] “Hamlet”, Shakespeare
[23] “A moca azul”, Frei Betto
[24] ”A questão nacional: a modernização”, Raymundo Faoro
[25] “Hamlet”, Shakespeare
[26] “Hamlet. Eis a questão”, Reinaldo Azevedo
[27] “A esperança do mundo”, Brecht
[28] “Se fôssemos infinitos”, Brecht
[29] “A política é a arte do possível”, Bismarck
[30] “A idéia da revolução democrática”, Tarso Genro
[31] “Hamlet”, Shakespeare
[32] “Hamlet”, Shakespeare
[33] “Hamlet”, Shakespeare
Ato 3
Polônio e a utopia do possível [1]
“A modernização, pelo seu toque voluntário, senão voluntarista, chega à sociedade por meio de um grupo condutor, que, privilegiando-se, privilegia os setores dominantes.
A modernização, quer se chame industrialização, revolução passiva, via prussiana, revolução do alto – ela é uma só, com um vulto histórico, com muitas máscaras, tantas quantas as das diferentes situações históricas.
A história que daí resulta será uma crônica de déspotas, de elites, de castas, nunca a história que realiza, aperfeiçoa e desenvolve. A história, assim fossilizada, é um cemitério de projetos, de ilusões e de espectros. O povo, por esse meio, não participa da mudança: ele a padece.
Desta vez, os espectros vagam nas ruas,sem emprego, miseráveis, depois de, perdendo tudo, perderem a esperança.” [2]
Hamlet : “Olha, Polônio. Um fantasma assombra o país. Tremem à presença dele e para conjurá-lo se unem.” [3]
Polônio : “Não vejo nada; todavia estou vendo tudo quanto nos cerca.” [4]
Hamlet : “Como ! Olhai para ele ! Vede seu pálido cintilar ! Sua presença e sua causa, juntas, pregando para as pedras, chegariam a comovê-las !” [5]
Polônio : “É pura invenção de teu espírito. O delírio é muito hábil nessas quiméricas invenções.” [6]
Hamlet : “Delírio ? Se fosse loucura, fugiria aos pulos...
Não derrameis sobre vossa alma a unção lisonjeadora de acreditar que não é vosso delito que fala, mas minha demência.
Nestes tempos, a própria virtude tem de pedir perdão ao vício e ainda deve prostrar-se a seus pés, implorando-lhe permissão para fazer-lhe o bem.” [7]
Polônio : “Grande verdade dizes, meu senhor.” [8]
Hamlet : “Estais vendo ali aquela nuvem, que tem a forma de um vaidoso pássaro ? Olhai que bico excelso ! ” [9]
“De que espécie de bom camarada será membro ?” [10]
Polônio : “Dos Brasis, não é ? Bela plumagem e carne ruim.” [11]
Hamlet : “Sim, tão estranho e feioso que parece uma mistura de pato com réptil.” [12]
Polônio : “É verdade ! Que combinações esdrúxulas ! Uma espécie de aberração! Uma nova classe ! Truncada e sem remissão...” [13]
Hamlet : Não seria um sapo ?
Polônio : “Pelos céus ! E tem barbas ! Como o vamos engolir ?” [14]
Hamlet : Não se ocupe disto. É ele quem vai nos deglutir, sugando nossos sonhos pela sua cloaca imunda. Com a voracidade de um buraco negro, arrasta toda esperança para o coração das trevas.
Polônio : “Que estranha borboleta !
No apogeu da juventude,
protagoniza seu ocaso,
voltando ao casulo
para morrer como lagarta...” [15]
Hamlet : Mas, por falar em animais, aqui estou vendo um rato ? [16]
“Ou é uma criança grande com fraldas ?” [17]
(Hamlet aponta para Polônio)
Polônio : “Será que me conheceis, senhor ?”
Hamlet : “Perfeitamente bem. És quem vende peixes.”
Polônio : “Não eu, meu senhor.”
Hamlet : “Mesmo o Sol que é um deus, se beija cadáver putrefato, gera larva num cão morto...” [18]
Não devias estar na ceia ? [19]
Polônio : Na ceia ?! Onde ?
Hamlet : “Sim. Na ceia. Mas não ceando. Estás melhor sendo comido. Um homem pode pescar com o verme que se alimentou de um rei e comer o peixe que se nutriu daquele verme.” [20]
Polônio : “Que queres dizer com isto ?”
Hamlet : “Nada; simplesmente mostrar-vos como um rei pode circular pelas tripas de um mendigo.” [21]
Posto isto, caro conselheiro, muito cuidado... Não nos deixemos inocular pela mosca azul...
(Hamlet pega um livro e começa a ler)
Polônio : “Que estás lendo, meu senhor ?”
Hamlet : “Palavras, nada mais que palavras...”
Polônio : “Quero dizer: qual o assunto que estais lendo, meu senhor ?” [22]
(Hamlet lê em voz alta)
Hamlet : “De repente, dei-me conta de que navegávamos para oeste, quando todos os planos orientavam-nos a leste. Não me restava alternativa: prosseguir no barco ou atirar-me no rio. Livrei-me da roupa e da bagagem e, abraçado a um cacho de valores, mergulhei. Nadei até a terceira margem do rio, esgueirei-me das piranhas e dos jacarés em busca de mim mesmo.” [23]
(Hamlet volta-se para Polônio)
Hamlet : Falamos tanto de bichos, que até poderíamos fazer uma revolução...
Polônio : Não me agrada em nada a idéia, meu senhor. Revoluções são muito perigosas. É sempre preferível uma modernização que conserve o acordo das elites. [24]
Hamlet : “Então, astuto conselheiro real, cujas intrigas tem a pretensão de enganar até a Deus, estás ou não convencido haver entre o céu e a terra mais coisas do que sonha tua vã filosofia ?” [25]
Polônio : “Meu nobre príncipe, dadas as circunstâncias, é meu conselho lidar com o mal menor enquanto o bem maior se mostra inalcançável.” [26]
Hamlet : “É terrível que o homem se resigne tão facilmente com o existente, não só com as dores alheias, mas também com as suas próprias.” [27]
Polônio : “Fôssemos infinitos, tudo mudaria. Como somos finitos, muito permanece.” [28]
Hamlet : Como saber se um rei é justo ?
Polônio : Se doa esmolas aos pobres e distribui juros aos ricos.
Hamlet : “Pelo que vejo, fazeis o possível com vossa arte...” [29]
Polônio : “Sem dúvidas, meu senhor. Minhas utopias são todas realistas.” [30]
Hamlet : “Que fizeste à Fortuna para que ela vos enviasse para esta prisão ?”
Polônio : “Prisão, meu senhor ?”
Hamlet : “Este país é uma prisão...”
Polônio : “Neste caso, o mundo também é.”
Hamlet : “Uma enorme prisão, na qual existem muitas celas, masmorras e calabouços. E este país é um dos piores.”
Polônio : “Não penso assim, meu senhor.” [31]
Hamlet : “Um satírico maledicente diria que os velhos têm a barba grisalha, a pele enrugada, com olhos que purgam espesso âmbar, que são cheios de ausência de espírito, juntamente com fraquíssimas nádegas. Calúnia ! Não o penso assim nestes termos, porque mesmo vós, tão velho quanto eu ficaríeis, caso pudésseis andar para trás como um caranguejo.” [32]
(Hamlet muda subitamente de assunto)
Hamlet : “Não tendes uma filha ?” [33]
[1] Fernando Henrique Cardoso, 2002
[2] ”A questão nacional: a modernização”, Raymundo Faoro
[3] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha
[5] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[6] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha
[7] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[8] “Hamlet”, Shakespeare
[9] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[10] “O Vigarista”, Herman Melville, acerca do tucano
[11] “O Vigarista”, Herman Melville, acerca do tucano
[12] “O Ornitorrinco”, Francisco de Oliveira
[13] “O Ornitorrinco”, Francisco de Oliveira
[14] Leonel Brizola, 1989
[15] “PT viveu como borboleta, mas morre como lagarta”, Josias de Souza
[16] “Hamlet”, Shakespeare – morte de Polônio
[17] “Hamlet”, Shakespeare
[18] “Hamlet”, Shakespeare
[19] “Hamlet”, Shakespeare – sobre Polônio
[20] “Hamlet”, Shakespeare
[21] “Hamlet”, Shakespeare
[22] “Hamlet”, Shakespeare
[23] “A moca azul”, Frei Betto
[24] ”A questão nacional: a modernização”, Raymundo Faoro
[25] “Hamlet”, Shakespeare
[26] “Hamlet. Eis a questão”, Reinaldo Azevedo
[27] “A esperança do mundo”, Brecht
[28] “Se fôssemos infinitos”, Brecht
[29] “A política é a arte do possível”, Bismarck
[30] “A idéia da revolução democrática”, Tarso Genro
[31] “Hamlet”, Shakespeare
[32] “Hamlet”, Shakespeare
[33] “Hamlet”, Shakespeare
Hamlet insurrecto
Ato 4
Ofélia assassina
“Como se pode acreditar em reconstrução da sociedade após um século de derrocada das utopias? O mundo assiste à vitória do conformismo, travestido de realismo.
A esquerda atua e fala como se escondesse um plano que não tem. Temerosa da reação econômica a qualquer iniciativa transformadora, esforça-se para parecer confiável aos que manejam o dinheiro.
É também por falta de confiança e de clareza a respeito de outro rumo que os progressistas se entregam.
A obra do pensamento é compreender o mundo e mudá-lo. A primeira tarefa de um homem, porém, é não morrer aos poucos: viver de tal maneira que possa morrer de uma vez só. O preço da vitalidade é a renúncia às defesas com que nos protegemos contra a desilusão e a derrota. Quem pagar esse preço pagará pouco por muito.” [1]
(Hamlet sentado com um crânio nas mãos)
Hamlet : “Eu quero ser uma mulher.” [2]
Não para ter uma buceta. Eu não quero deixar de ser homem para ser uma mulher. Eu quero ter um útero. Com o órgão que as mulheres geram pessoas, serei capaz de parir sonhos.
Ofélia : “Eu sou Ofélia.” [3]
Aquela que é cortejada e igualmente desprezada pelos homens, conforme seus desejos e seus interesses. Meu destino é deixar-me conduzir pela mão traiçoeira de um Rei assassino para me tornar a Rainha incestuosa.
“Ao voltar meus olhos para o fundo de minha alma, somente enxergarei manchas, tão negras e tão profundas que nunca poderão ser apagadas.” [4]
(Hamlet caminha em direção a Ofélia)
Hamlet : “Ah ! Abjeção ! Ela ! Ela mesma ! Antes mesmo que o sal das lágrimas hipócritas abandonasse o fluxo de seus olhos inflamados... Olhos sem tato, tato sem vista, ouvidos sem mãos ou olhos, olfato sem nada, a mais insignificante parte de um único e saudável sentido teria bastado para impedir semelhante estupidez. Estoura meu coração, pois devo refrear minha língua !” [5]
Ofélia : Eu sou Ofélia.
Aquela que os homens querem que enlouqueça e que se suicide.
“Adornada com estranhas grinaldas de botões de ouro, urtigas, margaridas e flores púrpuras, atiro-me no soluçante riacho. Enquanto canto estrofes de antigas árias, inconsciente de minha própria desgraça, afundo lentamente para a morte lamacenta, em meio às melodias de minha loucura.” [6]
Hamlet : “Entra para um convento ! Por que desejas ser mãe de pecadores ? Sou muito orgulhoso, vingativo, ambicioso, com mais pecados na cabeça do que pensamentos para concebê-los, imaginação para executá-los. Por que hão de existir pessoas como eu arrastando-se entre o céu e a terra ? Todos nós somos consumados canalhas; não acredites em nenhum de nós. Segue teu caminho para o convento.”
Ofélia : Eu sou Ofélia. Mas eu não vou mais representar Ofélia.
Eu não vou mais enlouquecer. Eu não vou mais me matar.
Eu não quero mais ser Rainha. Eu não quero mais ser esposa. Não quero me casar. Não quero mais ser mãe. Não quero mais ser virgem e casta. Não quero mais ser devassa. Não quero mais servir aos homens.
Todo homem que um dia caminhou sobre a face da terra, começou a viver dentro do meu ventre; veio ao mundo pelo meio de minhas coxas; ganhou a luz pelo buraco de minha vagina.
Todo homem é resultado do sêmen depositado em meu útero.
“E hoje eu devolvo ao mundo todo o esperma que recebi, porque ele se transformou num veneno mortal.” [7]
Eu não quero mais ser fecundada pelos homens. Eu não quero mais ser uma máquina de parir gente.
Eu não quero ser homem. Eu quero ser uma mulher. Mas eu não quero ser uma mulher num mundo de homens. Eu quero ser Ofélia.
Meu coração é o pêndulo do mundo.
“Eu arranquei o relógio que era meu coração para fora do meu peito. E fui para as ruas, vestida com meu sangue.” [8]
(Hamlet novamente com o crânio nas mãos)
Hamlet : “Ser ou não ser... Eis a questão.” [9]
Ofélia : Eis o Príncipe indeciso. Incapaz de transformar suas dúvidas em ação. Incapaz de agir sem provocar tragédias.
Eis o Príncipe acorrentado aos fantasmas de um passado que exige vingança. Incapaz de atender a um presente que clama por justiça. Incapaz de construir um futuro que não seja vil e iníquo.
Eis o Príncipe, o herdeiro do trono. Incapaz de romper com a sucessão de donos do poder. Incapaz de olhar para além das muralhas do palácio.
“Há algo de podre no reino da Dinamarca.” [10]
Onde estarão os Dinamarqueses ? Por que estão sempre fora de cena os Dinamarqueses ?
Que tumulto é este fora do palco ?
“Um fantasma ronda esta peça.” [11]
Todos se unem para exorcizá-lo. Em vão !
Eu já não sou Ofélia. Sou a nação traída.
“O país inteiro transformado num puteiro.
O futuro repetindo o passado.
Um museu de grandes novidades.” [12]
“Toda a luminosa esperança de uma inteira nação convertida num repugnante acordo entre financistas e famintos, entre os bancos e os grotões.” [13]
Eu já não sou Ofélia. Sou a multidão de humilhados.
Sou o exército de miseráveis.
Sou a privação de humanidade. Os sem-teto. Os vagabundos. Os mendigos.
Sou a privação de atividade. Os velhos, os loucos, os doentes, os delinqüentes.
Sou a privação de trabalho. Os imigrantes clandestinos, os refugiados políticos, os desempregados.
Sou a privação de liberdade. Os proletários e as prostitutas. Os adolescentes e os subempregados. [14]
Sou a rebelião, a insubmissão, a resistência, a insurreição.
Sou a fúria e a paixão.
Hamlet : “Que é mais nobre para a alma: sofrer os dardos de um destino cruel, ou pegar em armas contra um mar de calamidades e contra elas lutar até dar-lhes fim.” [15]
(Ofélia aponta para Hamlet)
Ofélia : Eis a questão.
“Eis o homem.” [16]
Aquele que destronou Deus e ocupou o seu lugar.
“Reis sucedem reis, perpetuando a dinastia de infâmia e horrores. [17]
Disseram que ao adormecer em seu jardim, Deus foi mordido por uma serpente. A serpente que lhe tirou a vida, agora usa a coroa que a ele pertencia. [18]
“Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? — também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, nós assassinos entre os assassinos?” [19]
Eis o homem.
“Que obra-prima é o homem ! Para mim, entretanto, o homem não passa da quintessência do pó.” [20]
"O homem nada mais é que uma corda estendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo; travessia perigosa, temerário caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
A grandeza do homem é ser ele uma ponte, e não uma meta; o que se pode amar no homem é ser ele uma transição e um ocaso." [21]
Deus está morto e também o homem deve morrer.
“Hamlet desaparecerá, como na orla do mar um rosto de areia.” [22]
(Ofélia mata Hamlet)
Ofélia : O homem está morto.
“O mundo está fora dos eixos. Bendita sorte ! Eu quero parir o ser capaz de colocá-lo em ordem !” [23]
[1] “Contra a corrente”, Roberto Mangabeira Unger
[2] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[3] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha
[5] “Hamlet”, Shakespeare
[6] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha
[7] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[8] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[9] “Hamlet”, Shakespeare
[10] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Marcelo
[11] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[12] “Brasil”, Cazuza
[13] “Anti-corvos”, arkx
[14] “A política do rebelde”, Michel Onfray
[15] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[16] João: 19,5
[17] “Hamlet insurrecto”, arkx
[18] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[19] “A Gaia Ciência”, Nietzsche
[20] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[21] “Assim falou Zaratustra”, Nietzsche
[22] “As palavras e as coisas”, Michel Foucault
[23] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
Ato 4
Ofélia assassina
“Como se pode acreditar em reconstrução da sociedade após um século de derrocada das utopias? O mundo assiste à vitória do conformismo, travestido de realismo.
A esquerda atua e fala como se escondesse um plano que não tem. Temerosa da reação econômica a qualquer iniciativa transformadora, esforça-se para parecer confiável aos que manejam o dinheiro.
É também por falta de confiança e de clareza a respeito de outro rumo que os progressistas se entregam.
A obra do pensamento é compreender o mundo e mudá-lo. A primeira tarefa de um homem, porém, é não morrer aos poucos: viver de tal maneira que possa morrer de uma vez só. O preço da vitalidade é a renúncia às defesas com que nos protegemos contra a desilusão e a derrota. Quem pagar esse preço pagará pouco por muito.” [1]
(Hamlet sentado com um crânio nas mãos)
Hamlet : “Eu quero ser uma mulher.” [2]
Não para ter uma buceta. Eu não quero deixar de ser homem para ser uma mulher. Eu quero ter um útero. Com o órgão que as mulheres geram pessoas, serei capaz de parir sonhos.
Ofélia : “Eu sou Ofélia.” [3]
Aquela que é cortejada e igualmente desprezada pelos homens, conforme seus desejos e seus interesses. Meu destino é deixar-me conduzir pela mão traiçoeira de um Rei assassino para me tornar a Rainha incestuosa.
“Ao voltar meus olhos para o fundo de minha alma, somente enxergarei manchas, tão negras e tão profundas que nunca poderão ser apagadas.” [4]
(Hamlet caminha em direção a Ofélia)
Hamlet : “Ah ! Abjeção ! Ela ! Ela mesma ! Antes mesmo que o sal das lágrimas hipócritas abandonasse o fluxo de seus olhos inflamados... Olhos sem tato, tato sem vista, ouvidos sem mãos ou olhos, olfato sem nada, a mais insignificante parte de um único e saudável sentido teria bastado para impedir semelhante estupidez. Estoura meu coração, pois devo refrear minha língua !” [5]
Ofélia : Eu sou Ofélia.
Aquela que os homens querem que enlouqueça e que se suicide.
“Adornada com estranhas grinaldas de botões de ouro, urtigas, margaridas e flores púrpuras, atiro-me no soluçante riacho. Enquanto canto estrofes de antigas árias, inconsciente de minha própria desgraça, afundo lentamente para a morte lamacenta, em meio às melodias de minha loucura.” [6]
Hamlet : “Entra para um convento ! Por que desejas ser mãe de pecadores ? Sou muito orgulhoso, vingativo, ambicioso, com mais pecados na cabeça do que pensamentos para concebê-los, imaginação para executá-los. Por que hão de existir pessoas como eu arrastando-se entre o céu e a terra ? Todos nós somos consumados canalhas; não acredites em nenhum de nós. Segue teu caminho para o convento.”
Ofélia : Eu sou Ofélia. Mas eu não vou mais representar Ofélia.
Eu não vou mais enlouquecer. Eu não vou mais me matar.
Eu não quero mais ser Rainha. Eu não quero mais ser esposa. Não quero me casar. Não quero mais ser mãe. Não quero mais ser virgem e casta. Não quero mais ser devassa. Não quero mais servir aos homens.
Todo homem que um dia caminhou sobre a face da terra, começou a viver dentro do meu ventre; veio ao mundo pelo meio de minhas coxas; ganhou a luz pelo buraco de minha vagina.
Todo homem é resultado do sêmen depositado em meu útero.
“E hoje eu devolvo ao mundo todo o esperma que recebi, porque ele se transformou num veneno mortal.” [7]
Eu não quero mais ser fecundada pelos homens. Eu não quero mais ser uma máquina de parir gente.
Eu não quero ser homem. Eu quero ser uma mulher. Mas eu não quero ser uma mulher num mundo de homens. Eu quero ser Ofélia.
Meu coração é o pêndulo do mundo.
“Eu arranquei o relógio que era meu coração para fora do meu peito. E fui para as ruas, vestida com meu sangue.” [8]
(Hamlet novamente com o crânio nas mãos)
Hamlet : “Ser ou não ser... Eis a questão.” [9]
Ofélia : Eis o Príncipe indeciso. Incapaz de transformar suas dúvidas em ação. Incapaz de agir sem provocar tragédias.
Eis o Príncipe acorrentado aos fantasmas de um passado que exige vingança. Incapaz de atender a um presente que clama por justiça. Incapaz de construir um futuro que não seja vil e iníquo.
Eis o Príncipe, o herdeiro do trono. Incapaz de romper com a sucessão de donos do poder. Incapaz de olhar para além das muralhas do palácio.
“Há algo de podre no reino da Dinamarca.” [10]
Onde estarão os Dinamarqueses ? Por que estão sempre fora de cena os Dinamarqueses ?
Que tumulto é este fora do palco ?
“Um fantasma ronda esta peça.” [11]
Todos se unem para exorcizá-lo. Em vão !
Eu já não sou Ofélia. Sou a nação traída.
“O país inteiro transformado num puteiro.
O futuro repetindo o passado.
Um museu de grandes novidades.” [12]
“Toda a luminosa esperança de uma inteira nação convertida num repugnante acordo entre financistas e famintos, entre os bancos e os grotões.” [13]
Eu já não sou Ofélia. Sou a multidão de humilhados.
Sou o exército de miseráveis.
Sou a privação de humanidade. Os sem-teto. Os vagabundos. Os mendigos.
Sou a privação de atividade. Os velhos, os loucos, os doentes, os delinqüentes.
Sou a privação de trabalho. Os imigrantes clandestinos, os refugiados políticos, os desempregados.
Sou a privação de liberdade. Os proletários e as prostitutas. Os adolescentes e os subempregados. [14]
Sou a rebelião, a insubmissão, a resistência, a insurreição.
Sou a fúria e a paixão.
Hamlet : “Que é mais nobre para a alma: sofrer os dardos de um destino cruel, ou pegar em armas contra um mar de calamidades e contra elas lutar até dar-lhes fim.” [15]
(Ofélia aponta para Hamlet)
Ofélia : Eis a questão.
“Eis o homem.” [16]
Aquele que destronou Deus e ocupou o seu lugar.
“Reis sucedem reis, perpetuando a dinastia de infâmia e horrores. [17]
Disseram que ao adormecer em seu jardim, Deus foi mordido por uma serpente. A serpente que lhe tirou a vida, agora usa a coroa que a ele pertencia. [18]
“Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? — também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, nós assassinos entre os assassinos?” [19]
Eis o homem.
“Que obra-prima é o homem ! Para mim, entretanto, o homem não passa da quintessência do pó.” [20]
"O homem nada mais é que uma corda estendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo; travessia perigosa, temerário caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
A grandeza do homem é ser ele uma ponte, e não uma meta; o que se pode amar no homem é ser ele uma transição e um ocaso." [21]
Deus está morto e também o homem deve morrer.
“Hamlet desaparecerá, como na orla do mar um rosto de areia.” [22]
(Ofélia mata Hamlet)
Ofélia : O homem está morto.
“O mundo está fora dos eixos. Bendita sorte ! Eu quero parir o ser capaz de colocá-lo em ordem !” [23]
[1] “Contra a corrente”, Roberto Mangabeira Unger
[2] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[3] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha
[5] “Hamlet”, Shakespeare
[6] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha
[7] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[8] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[9] “Hamlet”, Shakespeare
[10] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Marcelo
[11] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[12] “Brasil”, Cazuza
[13] “Anti-corvos”, arkx
[14] “A política do rebelde”, Michel Onfray
[15] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[16] João: 19,5
[17] “Hamlet insurrecto”, arkx
[18] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[19] “A Gaia Ciência”, Nietzsche
[20] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[21] “Assim falou Zaratustra”, Nietzsche
[22] “As palavras e as coisas”, Michel Foucault
[23] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
Hamlet insurrecto
Ato 5
Insurrecto
“O Brasil mudou muito ao longo de seus 500 anos. E a grande alteração foi a formação do povo brasileiro. Na origem, éramos contingentes de desenraizados: índios destribalizados, negros desafricanizados, brancos deseuropeizados. E o processo histórico brasileiro constituiu um povo novo, com uma clara identidade nacional, que fala a mesma língua, que desenvolveu uma cultura de síntese, que tem características muito positivas. Ele nasceu na modernidade e olha para o futuro.
Formar o povo brasileiro foi nosso maior êxito, mas temos um imenso fracasso: esse povo nunca comandou sua nação. Durante nossa história convivemos com essa contradição. Só que não está sendo mais possível, porque o povo já é forte e grande demais. Agora, o passo histórico é assumir o controle da sua nação, para refundá-la.
O Brasil foi fundado há 500 anos como uma empresa comercial controlada e voltada para fora. O Brasil tem de ser refundado como uma nação para si. Quem pode fazer isso é o povo e só agora ele tem condições para isso.
Então, a crise atual é muito mais profunda e dramática do que as outras, porque ela exige uma solução radical que nunca tivemos. Por isso ela é tão demorada, prolongada e mais difícil.” [1]
Hamlet : Deus e o homem estão mortos.
Hamlet está morto.
Os reis estão mortos.
“Eu não sou mais um ator.” [2]
Eu me tornei o Espectro.
Estou morto. Apesar disto nunca estive tão vivo quanto agora.
Sou o fantasma que assombra esta peça. Inútil tentar conjurar-me. Tremam ao ouvir o meu nome. [3]
À cegueira da vingança, eu respondo com implacável justiça.
Desmascaro os reis assassinos.
Abdico ao trono.
Renego a coroa.
Abro os portões do castelo.
Que enfim os Dinamarqueses invadam a cena para varrer a podridão do reino da Dinamarca.
Agora, todo este reino será deles.
Já não tenho dúvidas, mas todas as questões continuam em aberto.
Hamlet : Hoje eu venho para o alto deste palco. E meu único motivo é descobrir o que se pode ver daqui de cima. [4]
Garantiram não haver alternativa. [5]
Afirmaram se tratar de uma era de prosperidade sem igual na história do Homem, um novo renascimento. [6]
Em vez disto, à minha frente contemplo as ruínas da nação.
Uma paisagem desolada pela exclusão e da usurpação.
Fantasmas vagam pela escuridão do caos enquanto reis festejam seus torpes crimes.
“O sonho desmoronou.” [7]
A esperança não se cumpriu. [8]
Hamlet : Hoje eu me volto para dentro de mim mesmo. E meu único motivo é ver o que posso descobrir neste mergulho interior.
“Eu sou meu filho, meu pai, minha mãe, e eu mesmo. Eu represento o ator ! Estou sempre morto. Mas um vivo morto, um morto vivo. Sou um morto sempre vivo. A tragédia em cena já não me basta. Quero transportá-la para minha vida. Eu represento totalmente a minha vida. Onde as pessoas procuram criar obras de arte, eu pretendo mostrar o meu espírito. Não concebo uma obra de arte dissociada da vida.” [9]
Eu não represento mais ninguém.
Eu não represento mais nada.
A representação está morta.
“Para mim é tão odioso seguir quanto guiar.” [10]
Hamlet : “Após o fim de tudo, fantasmas rondam o país.
Anfitriões da utopia, anunciam nada mais a se perder.
Senão as correntes que aprisionam um mundo a ganhar.
Isso é o que nós somos: o fim e o começo.
Dos escombros do velho novamente se ergue o clamor por mudança.
O que fazer ?
Tudo é incerto.
Nada é inteiro.
Isso é o que nós somos : nevoeiro.
A hora é agora !
Aqui nasce o futuro !” [11]
Hamlet : O mundo está fora dos eixos. [12]
Onde estarão aqueles nascidos para colocá-lo em ordem ?
Por que não sobem ao palco aqueles nascidos para colocar ordem no mundo ?
(Hamlet aponta para a platéia)
Hamlet : “Ser ou não ser... Eis a questão.
Adue, adue. Lembrem-se de mim.
Não se esqueçam. Não se esqueçam.” [13]
[1] César Benjamin, 07/01/2006
[2] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[3] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[4] “A subida ao Monte Ventoux”, Petrarca - 26/04/1336
[5] TINA (There Is No Alternative), Margaret Thatcher, 1979
[6] Fernando Henrique Cardoso, 20/02/2002
[7] Francisco Whitaker, 02/01/2006
[8] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[9] Antonin Artaud
[10] “A Gaia Ciência”, Nietzsche
[11] “Isso é o que nós somos, companheiro”, arkx
[12] “Hamlet”, Shakespeare
[13] “Hamlet”, Shakespeare
Ato 5
Insurrecto
“O Brasil mudou muito ao longo de seus 500 anos. E a grande alteração foi a formação do povo brasileiro. Na origem, éramos contingentes de desenraizados: índios destribalizados, negros desafricanizados, brancos deseuropeizados. E o processo histórico brasileiro constituiu um povo novo, com uma clara identidade nacional, que fala a mesma língua, que desenvolveu uma cultura de síntese, que tem características muito positivas. Ele nasceu na modernidade e olha para o futuro.
Formar o povo brasileiro foi nosso maior êxito, mas temos um imenso fracasso: esse povo nunca comandou sua nação. Durante nossa história convivemos com essa contradição. Só que não está sendo mais possível, porque o povo já é forte e grande demais. Agora, o passo histórico é assumir o controle da sua nação, para refundá-la.
O Brasil foi fundado há 500 anos como uma empresa comercial controlada e voltada para fora. O Brasil tem de ser refundado como uma nação para si. Quem pode fazer isso é o povo e só agora ele tem condições para isso.
Então, a crise atual é muito mais profunda e dramática do que as outras, porque ela exige uma solução radical que nunca tivemos. Por isso ela é tão demorada, prolongada e mais difícil.” [1]
Hamlet : Deus e o homem estão mortos.
Hamlet está morto.
Os reis estão mortos.
“Eu não sou mais um ator.” [2]
Eu me tornei o Espectro.
Estou morto. Apesar disto nunca estive tão vivo quanto agora.
Sou o fantasma que assombra esta peça. Inútil tentar conjurar-me. Tremam ao ouvir o meu nome. [3]
À cegueira da vingança, eu respondo com implacável justiça.
Desmascaro os reis assassinos.
Abdico ao trono.
Renego a coroa.
Abro os portões do castelo.
Que enfim os Dinamarqueses invadam a cena para varrer a podridão do reino da Dinamarca.
Agora, todo este reino será deles.
Já não tenho dúvidas, mas todas as questões continuam em aberto.
Hamlet : Hoje eu venho para o alto deste palco. E meu único motivo é descobrir o que se pode ver daqui de cima. [4]
Garantiram não haver alternativa. [5]
Afirmaram se tratar de uma era de prosperidade sem igual na história do Homem, um novo renascimento. [6]
Em vez disto, à minha frente contemplo as ruínas da nação.
Uma paisagem desolada pela exclusão e da usurpação.
Fantasmas vagam pela escuridão do caos enquanto reis festejam seus torpes crimes.
“O sonho desmoronou.” [7]
A esperança não se cumpriu. [8]
Hamlet : Hoje eu me volto para dentro de mim mesmo. E meu único motivo é ver o que posso descobrir neste mergulho interior.
“Eu sou meu filho, meu pai, minha mãe, e eu mesmo. Eu represento o ator ! Estou sempre morto. Mas um vivo morto, um morto vivo. Sou um morto sempre vivo. A tragédia em cena já não me basta. Quero transportá-la para minha vida. Eu represento totalmente a minha vida. Onde as pessoas procuram criar obras de arte, eu pretendo mostrar o meu espírito. Não concebo uma obra de arte dissociada da vida.” [9]
Eu não represento mais ninguém.
Eu não represento mais nada.
A representação está morta.
“Para mim é tão odioso seguir quanto guiar.” [10]
Hamlet : “Após o fim de tudo, fantasmas rondam o país.
Anfitriões da utopia, anunciam nada mais a se perder.
Senão as correntes que aprisionam um mundo a ganhar.
Isso é o que nós somos: o fim e o começo.
Dos escombros do velho novamente se ergue o clamor por mudança.
O que fazer ?
Tudo é incerto.
Nada é inteiro.
Isso é o que nós somos : nevoeiro.
A hora é agora !
Aqui nasce o futuro !” [11]
Hamlet : O mundo está fora dos eixos. [12]
Onde estarão aqueles nascidos para colocá-lo em ordem ?
Por que não sobem ao palco aqueles nascidos para colocar ordem no mundo ?
(Hamlet aponta para a platéia)
Hamlet : “Ser ou não ser... Eis a questão.
Adue, adue. Lembrem-se de mim.
Não se esqueçam. Não se esqueçam.” [13]
[1] César Benjamin, 07/01/2006
[2] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[3] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[4] “A subida ao Monte Ventoux”, Petrarca - 26/04/1336
[5] TINA (There Is No Alternative), Margaret Thatcher, 1979
[6] Fernando Henrique Cardoso, 20/02/2002
[7] Francisco Whitaker, 02/01/2006
[8] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[9] Antonin Artaud
[10] “A Gaia Ciência”, Nietzsche
[11] “Isso é o que nós somos, companheiro”, arkx
[12] “Hamlet”, Shakespeare
[13] “Hamlet”, Shakespeare